terça-feira, 15 de novembro de 2011

E Há o Mar

"Livres Pensantes" vai fazer uma pausa até Dezembro. Aqui,  neste  espaço, tem saudado e assinalado ininterruptamente todos os dias. Alguns com muita discrição, outros com assumida veemência e uns tantos com ousado deleite literário. Nem sempre os temas abordados tiveram a dimensão que mereciam, mas a parcimónia a que obriga este formato e o tempo que vários tempos facultam foram impedindo uma maior exposição e, por tal, uma melhor e mais adequada apresentação. Contudo, "Livres Pensantes" celebrou incessantemente a Palavra e foi pela palavra que encontrou o mar como uma forma de se despedir. E porque " Mar e Mar e Há Ir e Voltar", não diz adeus, apenas até Dezembro .

Uma forma de me despedir
Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta
e um prazer em o dizer
um gosto afinal em gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos ser a/mar a mulher
mera forma talvez de uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular melhor de tarde em tarde
no mês de setembro nas marés vivas
O melhor da mulher talvez o olhar
é para mim o mar da mulher
e à mulher que um só dia encontro na vida
de passagem um simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos quilómetros do mar
mas mulher que não mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados
a essa mulher qualquer
eu chamo mulher do mar
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir

Ruy Belo, «Toda a Terra» in Antologia Poética,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1999


MAR
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
Eras um campo macio de lavrar
Ou qualquer sugestão que apetecia...

Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
Que não pode calar-se, nem gritar,
Nem aumentar nem sufocar o pranto...

Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
Afogava o arado e o lavrador!

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
E foste tu depois que nos traíste!

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
O teu encantamento!

Miguel Torga, Antologia Poética,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 5.ª ed., 1999


Retrato talvez saudoso da Menina Insular

Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
E ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém.

Natália Correia ( 1923-1993), in Poesia Completa, 1999


"E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura. Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar. A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca."

Clarice Lispector, in "Banhos de Mar"

Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen , in "Livro Sexto", 1962

Mar

Mar metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor de maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfaz.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
E porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

Sophia de Mello Breyner Andresen , in "Poesia I"


"Entramos na água (...) Depois avançamos pelo mar, defrontamo-nos com a sua magnitude no nosso corpo vigoroso. E havia sol no teu ser imortal. E mergulhaste e escorria-te depois na face a festa do mar. E mergulhámos de novo para absorver o mar todo. E vogámos à tona de água, sustentados em nosso peso no seu dorso. Depois rompemos mar fora a um aceno invisível. E a eternidade existia. E nós parámos lá longe e deitamo-nos nela. O céu era muito azul e víamo-lo por cima. Havia nele espaço bastante para a nossa abundância interior e nós olhávamo-lo como quem chega à sua própria morada que não conhecia. Flutuamos no incerto de uma grandeza divina. Senhores da terra, do tempo. Da força, do poder. Estamos no meio do mar, olhamo-lo a toda a volta e o seu mistério infinito está em nós. Depois voltamo-nos para a praia, vamos remando devagar. Às vezes olhamo-nos. O teu riso estrídulo, os cabelos molhados, o mar cai-te das pestanas para os olhos. A face húmida, a alegria vertiginosa da vida, não há morte, não há morte. Depois deitamo-nos na areia ao sol, ouvimos o mar, o fervor na caldeira do mundo. Ou não o ouvimos, há o espaço do seu rumor e nós estamos no meio dele, deitados ao sol. Não vejo agora lá ninguém, para todo o espaço ser nosso. Enchemo-lo todo, estamos bem. (...) Não temos ideias, temos só a perfeição de estar".

Vergílio Ferreira, in “Em Nome da Terra” , Lisboa , Bertrand Ed, 1990

Mar

Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.

Vinicius de Moraes, in “ Antologia Poética”



O mar
Conheço teu agitado marulho
tua voz de barítono
conheço tua zangada pronúncia
tuas lanças arrojadas pelos braços da tormenta
conheço tua suave dança
na onda calma e inumerável
na crista transformada em súbita canção de espumas
conheço-te na beleza da baía amanhecida
na hora melancólica do crepúsculo
e no teu dorso enluarado.

Me deste a paisagem das águas litorâneas
e a espuma se estendendo sobre a areia
me mostraste a nudez e o encanto das praias solitárias
a preamar e a vazante
e o teu perfil de mastros e gaivotas
me deste a magia do horizonte
uma vela solta ao vento
e um barco de papel para os meus sonhos
mas nunca me mostraste
a extensão azul dos teus domínios
e nem um indício sequer dos teus enigmas.

Marinheiro sem mar e sem destino
nunca pude navegar tuas distâncias.
Deste banquete
me deste apenas o paladar salgado dos meus versos
minha sílaba de sal
e a tua própria essência salpicada entre meus dedos
molécula elementar
unânime cristal
para que na minha dieta imprescindível
eu possa provar teu sabor todos os dias.

Manoel de Andrade,Curitiba, Abril de 2004, in “ Cantares”, Ed. Escrituras, S.Paulo

2 comentários:

  1. Uma selecção excelente e uma forma diferente de fazer uma pausa cheia de Mar e de Poesia. Esperarei. Até Dezembro.

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  2. ...E quem é que criou essa frase tão badalada, tão apaludida, essa frase publicitária: "Há mar e mar; e há ir e voltar"?... Quem foi o poeta, e publicitário de profissão, um profissional com muito mérito que a criou?... Quem?... Alexandre o'Neil. Pareceu a muitos um sonhador distraído, um crítico sarcástico e contundente,com uma pontaria inevitavelmente afiada, poeta genial mesmo, mas - deixem-me dizê-lo... - de distraído nada tinha!... Poucos viveram Portugal, sentiram o nosso país, de um modo tão concentrado, tão comprometido com a nossa terra, este rectângulo com uns salpicos de ilhéus soltos pelo no Atlântico, país com tantas idiosincrasias, benesses, ladaínhas, parvoíces, lamechismo, e orações, como o nosso Alexandre!... Uma tarde - esquecidos vão esses tempos!... - a 25 de Abril, em 74, fez um aceno esparso e flamejante de quem está aflito, e apanhou um táxi, ali para os lados do Saldanha (Lisboa), junto com o inolvidável escritor Augusto Abelaira, e abalaram os dois para a Revolução dos Cravos, para o Largo do Carmo, onde já não cabia uma linha, nem um alfinete, a essa hora tardia... E o povo berrava, enlouquecido de alegria, que era "quem mais ordena...". Alexandre O'Neil merece ser lembrado. Andam nos lábios de muitos de nós aforismos, frases, palavras agrupadas, lingotes fantásticos ao jeito de provérbios, sucessivamente citados, por tantos, sem (talvez...) saberem que foi o seu autor deles!!!... Quanto ao Mar, mesmo distante, quase ausente, é sempre presença no nosso imaginário. Muitos, nunca conheceram o mar!... E morrem sem o terem ouvido, sem perto dele chegarem. E até durante as suas vidas dedicaram algumas das suas obras musicais ao tema do mar, sem sequer o verem, nem mesmo em fotografia... Quem, por exemplo?!... Beethoven, esse génio da Música. Só por isto temos razão para sermos... mais felizes do que ele. E seremos?!... - Varela Pires

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