terça-feira, 27 de setembro de 2011

Vitorino Nemésio (II) e (III)

A VOZ SUPLICANTE DO ILHÉU (II)
Por Varela Pires
Voltemos a Vitorino Nemésio.
Mau Tempo no Canal ” é simultaneamente o centro do julgamento da clausura insular e o acicatado desejo de fuga, no principal romance da viagem eterna de todo o ilhéu ao encontro da sua ilha perdida, reflectindo também os sonhos e os desejos que formaram o carácter de Nemésio.
É na tensão existente entre essa “ilha perdida” que todo o açoriano procura os seus dias futuros, constrói o seu projecto de vida. E Nemésio não poderia ficar indiferente a essa obsessão da Língua, à pronúncia característica, como uma carícia, às suas potencialidades, verdadeiro elo de ligação de todos, vivendo a dor do isolamento que o discurso poético se povoa de vivências carregadas de emoção.
“Meus degraus ainda têm a passada do adeus. / Lá, quando uma palavra cria tudo / E o resto, fechada a porta, / É posto nas mãos de Deus.”
O verso de Vitorino Nemésio é a emoção em si, a renúncia escrita nas vagas de um oceano que é mais de partida do que de chegada, uma singular tristeza sempre escondida pela bruma de um choro em fundo, tão permanente e soletrado como o céu espelhado nas caldeiras vulcânicas.
Seria loucura nossa pretender escrever sobre a obra de Nemésio num modesto artigo… Contudo, há dias, folheando apontamentos, deparámos com um belo poema dos últimos anos de vida do poeta, poema que em tempos nos merecera atenção especial, numa palestra que então proferimos em Angra do Heroísmo, na sua Ilha Terceira, nos Açores.
Vitorino Nemésio fora mação (entrara na Maçonaria aos 28 anos, quando termina o curso de Filologia Românica em Coimbra), e depois de tremendas crises religiosas (ele fora educado desde o berço por seus pais e avós na religião Católica…), já para o fim da vida, inconformado, “pede misericórdia a Deus - Pai”, ao mesmo tempo que se especulava no meio universitário a sua inesperada reconversão ao espírito cristão. Todavia, tudo isto é sempre uma questão do foro íntimo… Não nos vamos prolongar.
Eis, pois, o seu enternecedor poema a que deu o título “Prece”:
“Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado, / Como quem deixa à porta o saco para o pão. / Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado. / O que for, assim seja, à tua mão. / A tua vontade se faça, a minha não.”
“Senhor, abre ainda mais o meu lado ardente, / Do flanco de teu Filho copiado. / Corre água, tempo e pus no sangue quente: / Outro bem não me é dado. / Tudo e sempre assim seja, / E não o que a alma tíbia só deseja.”
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer, / Que com pontas de fogo o podre se adormenta. / O teu perdão de Pai ainda não pode ser, / Mas, lembra-te que é fraca a alma que aguenta: / Se é possível, desvia o fel do vaso; / Se não é, beberei. Não faças caso.”
Este poema escrito pelo poeta, por Vitorino Nemésio, por um homem resignado e suplicante, poema incluído em “O Verbo e a Morte”, é acima de tudo o “Eu” que reflecte a solidão e o conformismo perante as leis da vida, atingindo o zénite no momento que a morte se prepara.
Há nele a presença da luz que o exame de consciência traz, num gesto confessional de quem se encontra já no patamar da transição de uma vida para uma outra existência enigmática e desconhecida, sede de um provável juízo final, onde as almas serão julgadas pelo que fizeram ou deixaram de fazer na altura própria, na sua existência terrena.
É um poema que carrega um pausado e natural cansaço, um desespero e pessimismo finais, de quem está acabando de cumprir, mal ou bem, uma vida corporal, demasiado rente ao chão.
Extasia-nos esta poesia vertical, cheia de musicalidade intrínseca, que insistentemente aponta para o alto, mesmo quando o homem de que fala não consegue libertar o seu corpo da terra em que acabará por tombar, no sepulcro em que terminará por se confundir, por vir a ser nada, nada tendo sido.
Estamos perante um poema – oração, plasmado de humilde e humilhada sinceridade, com as cores pálidas e chagosas do que é julgado perante Deus, desfalcado, esperando o perdão do Rei do Universo a quem chama Pai, e de quem em última instância espera o perdão final e único.
                    MESTRE VITORINO DA PRAIA (III)
              Vitorino Nemésio
Escritor, poeta, filósofo, pensador livre, jornalista, professor universitário, conferente, académico. Um português ilustre.
Mação, também, como se frisou em artigo anterior, desde a sua juventude percorrida na universitária Coimbra, mas um mação talvez pouco convicto.
No entanto, Nemésio acaba os seus dias num grande e emocionante reencontro com o Deus da sua infância, entrevisto na piedade do meio familiar, onde a missa dominical e a reza diária do terço era obrigação imperdível. Com o Deus apreendido na comunidade cristã de Vila Praia da Vitória, o Deus insular, retratado na vida piedosa daquelas santas tias que o mimaram de uma forma inesquecível, almas espectrais memorizadas em diversos percursos da obra literária de Nemésio.
“Tua vontade se faça, a minha não.” (…) “O teu perdão de Pai ainda não pode ser.”
Como o Crucificado no Calvário, o poeta implora um possível perdão, um possível afago, numa cadência arrastada de arrependimento e verdade, na forma dialogal, donde a palavra poética de que o verso é tecido emerge isenta da poalha com que se vestiu no mundo: “Mas lembra-te que é fraca a alma que aguenta: / Se é possível, desvia o fel do vaso; / Se não é, beberei. Não faças caso.”
Oração da hora da abalada, acto de contrição nimbado de uma acolhedora réstia de fé, de confiança quase cega, de abandono nas mãos do Eterno.
Nascido do húmus, crescido nesse basalto negro de formas caprichosas, surgido da bruma incessante das Ilhas, percorrida a vida, a vida toda, o poeta suspira pelo amor ou pela criação.
Suspira por ser elevado à condição divina, depois de cumprido o caminho, de um longo peregrinar de sonhos e quedas, feito de aprendizagem e do erro, do prazer e do sofrimento, das múltiplas vivências inesquecíveis.
Agora, nada mais fica, nada mais resta ao poeta e ao homem que aparecer perante Deus, perante o Criador, munido do saco para o pão, do saco vazio, como mendigo e suplicante, saco de quem esbanjou as manhãs e as tardes e as noites e chegou impreparado à hora em que se define o problema da salvação, em que nenhum outro credo importa, a esse momento de prestar contas de cristão, contas de cristão arrependido.
Aguarda a tolerância, a bondade misericordiosa do Divino, porque vai em busca da prometida felicidade escrita nos Evangelhos.
Fica-nos, pois, escutado este dialogado e rezado poema, o tom sublime da precariedade no melhor que a poesia de Vitorino Nemésio nos pode oferecer, em termos de comunicação coloquial, confessional.
O Professor Doutor Vitorino Nemésio, de seu nome completo Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, fará a 19 do próximo mês de Dezembro cento e dez anos que nasceu nos Açores, na Vila Praia da Vitória. E mais. No próximo ano, em 2012, a 20 de Fevereiro completar-se-ão 34 anos sobre a data do seu falecimento no Hospital da CUF, em Lisboa.
É bem certo o aforismo que diz que o homem nasce onde nasceu e irá morrer onde nunca esperou morrer. Como Vieira, sete palmos de terra para nascer, e um mundo inteiro para morrer…
Que se tem projectado a nível nacional para comemorar tão ilustre cultor da Língua Portuguesa, tão inigualável conversador, poeta, escritor, e professor? De momento, não temos conhecimento de qualquer projecto, nem no âmbito nacional, nem no âmbito regional, mais propriamente nos Açores.
Nemésio. Senhor de uma vastíssima e diversificada cultura, génio da palavra escrita e da palavra falada, hoje relembrado com saudade por gerações de alunos universitários, de amigos, de admiradores. Muitos fora do país.
Vitorino Nemésio no convívio privado era galhofeiro, gostava da brejeirice, da anedota, da pequena história, de evidenciar os seus admiráveis dotes de observação. Alegre, também. Sim! Porque, parafraseando São Francisco de Sales, um professor triste não passa de um triste professor, não é?!...
Nemésio. Por vezes, não se levava muito a sério, a ele próprio… Todavia, era perspicaz, e sentia-se à vontade no convívio alegre e franco quer com os seus colegas, quer com os seus estimados alunos. Sobretudo, impressionava o seu respeito pelo aluno, e pelo trabalho de investigação que o mesmo desenvolvia.
Em suma. Um homem sério, sabedor, dotado de uma irrequietude de espírito que impressionava.
Mestre (sábio) Vitorino Nemésio. Mestre?!... Porém, Vitorino não gostava que lhe chamassem “sábio” ou “mestre”… Porque, para ele, Mestre, verdadeiro Mestre tinha seu avô, pescador, homem grande, toda uma vida dedicado à faina do mar. E a provar isto, esta asserção, a replicar a memória do seu versejar espontâneo, aí estão á laia de exemplo os versos da sua autoria e de índole biográfica, com que terminamos…
“Mestre Vitorino da Praia, / Meu avô, homem discreto? / Para que levaste o tino… / Que não deixaste ao neto?...”
O título desta crónica aplica-se, por conseguinte, ao avô de Vitorino Nemésio, o “Mestre Vitorino da Praia”…, embora todo o conteúdo da mesma continue a celebrar os cento e dez anos do nascimento dessa grande figura da cultura portuguesa que foi o Professor Doutor Vitorino Nemésio.
VARELA PIRES

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