segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Vitorino Nemésio (I)


      VITORINO
                MAS TAMBÉM NEMÉSIO (I)
                   Por Varela Pires
“Ser a vida e não ter já vida – era um destino / Depois dar a minha mãe a glória de me ter tido, / A meu pai, vendado de terra, um halo da minha luz e tocar tudo, / onde eu houvesse estado, de uma sagração natural”, em “O Bicho Harmonioso”
“Ah, a saudade dessas milhas salgadas sem corpo, / e a névoa e extensão que elas mesmas criavam?...”, em “Nem toda a Noite a Vida”.
Quem conhece a gente açoriana e aquelas gotas de terra, pigmentando o vasto azul Atlântico, sabe o que vale o português das Ilhas, apinhado nas suas casas, nos vales ou encostas da orografia vulcânica.
Vitorino Nemésio era açoriano. Nascera na Vila Praia da Vitória, na Ilha Terceira. Homem de um saber vasto e variado. À antiga. Culto, cultíssimo. Nas suas aulas de professor, na Universidade, era igual a ele próprio. Começava por um assunto, e ia por aí fora imune aos respeitos humanos, às quezílias inúteis. Ia por aí fora, ante o silêncio expectante dos alunos, e quando ele acabava íamos rever (nós os alunos) e admirávamo-nos da diversidade dos assuntos tratados, com uma objectividade e profundeza que impressionava.
A par da solenidade e do brilho que a sua figura emprestava às aulas, das numerosas conferências, nutria uma paixão pelos moinhos, o que daria origem à aquisição de alguns em sítios geograficamente distantes com o fito de morar neles até aos últimos anos da sua vida, ouvindo soprar o vento, o vento a roçar-se nas velas noites e dias a fio. Não lhe sobrou tempo, o tempo que pretendia para concretizar esse sonho de acordar no cimo dos serros, mortificando de felicidade os tímpanos naquela toada de assombro…, revivendo os ventos que outrora assopravam a sua velha Vila Praia da Vitória.
Quem se lembra agora das suas palestras ou conversas na TV, nos idos anos setenta?! Quem?... Do “Se Bem me Lembro…”, entoado naquela sua nunca esquecida e característica pronúncia de ilhéu, que era a sua imagem de marca, e que nunca renegou… Do “bailado” das suas mãos enquanto falava, das suas mãos que gestualmente assumiam uma intensa expressividade, provocando o volume do conto cheio de imaginário, a surpresa da pequena estória ouvida, a revelação da conversa íntima, do vastíssimo conhecimento da História Grega e Romana, de tudo o que dizia respeito à Antiguidade Clássica, religando o passado com a época moderna em que vivia, em que vivíamos. E daí tirando ilações oportunas, conclusões interessantíssimas. Antes, inimagináveis.
O dia-a-dia de Vitorino Nemésio era uma aprendizagem permanente, como permanente era a transmissão do seu pensamento, de uma forma natural, simples, porque tudo surgia a propósito.
“Nem toda a noite a Vida” e “O Bicho Harmonioso” são livros que retratam um universo poético fascinante, que encantam pela sua leitura, que mereciam ser comentados poema a poema, de verso a verso, tal a força, o brilho da palavra poética.
A obra de Nemésio, em prosa, verso, ensaio, romance, conto, reportagem, crónica, “suelto”, pela amplitude e pela riqueza intrínseca, pela variedade e pela profundidade, ainda constitui para qualquer crítico uma fonte de complexidade, de embaraço, de decifração.
Segundo o próprio Vitorino, segundo o poeta, em “O Bicho Harmonioso” estão “presentes “o medo da infância no microcosmo da Ilha, o isolamento no seio de uma comunidade patriarcal, a revelação de Deus e do próximo na vizinha e na família, do destino no amor e na promessa da morte”. E ainda na mesma obra. “Como o próprio símbolo diz: é esse meu duplo lírico, animal fabuloso que me elucida das minhas aspirações profundas, amores, cuidados, sonhos, o mundo perdido da infância”.
E a saudade de ilhéu está sempre presente em Nemésio. “O ovo que deixei, bicado e quente, / vazio de mim, no mar / e que ainda hoje deve boiar, ardente / Ilha / e que ainda hoje deve lá estar”.
Segundo José Martins Garcia, o poeta nasceu com um talento multiforme que daria à vontade para mais dez autores e todos eles de primeira água.
Foi Nemésio também o autor engenhoso de “Mau Tempo no Canal”, dessa obra de grande fôlego, bíblia da açorianidade, onde prepondera o drama humano, existencial e afectivo da protagonista Margarida Clark Dulmo, “ilha perdida” no horizonte insular do autor, e aparentemente tão real como ser insatisfeito e fugidio. A própria personagem, enquanto criação literária do escritor, é objecto daquela veneração que Vitorino dedicará toda a sua vida às personagens femininas, na ficção e na vida real.
Também… influência da presença e da educação que recebeu das tias naquele grande casarão, dessas piedosas e santas mulheres com quem foi criado em criança? Provavelmente, sim.
Em Praia da Vitória, apaparicado à mesa sempre posta, naquelas enormes salas, no casarão das tias, recheado de muitas janelas pintadas de verde, onde muito mais tarde no espaço envolvente, mesmo defronte, foi colocado em sua homenagem um busto, moldado em bronze, de óculos postos, olhando o quotidiano de bruma, a ilha regada a suor, a trabalho, a lágrimas de viagens e saudades, e acariciada pelo mar, pelos temporais…
Nem toda a noite o dia."
                 Varela Pires
                           (CONTINUA)

1 comentário:

  1. Vitorino Nemésio não foi só um grande escritor, um poeta exímio e um excelente professor. Ele foi um extraordinário comunicador que prendia quem o escutava sem que o tempo pesasse.
    Parabéns por recordá-lo.Justo é também aquele que sabe escrever com justeza.

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