quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Sobre a Poesia IX

Entardecer

Vejo as vermelhas caudas do crepúsculo
e o verde fulgor do mar.
Lenta é a tarde
e quero demorá-la em densas pálpebras,
consagrando-a à companheira imóvel
na melancólica quietude do casario
em que as consoantes são de espessa pedra e surda plenitude.
Neste murmúrio de sombra ainda tão solar
quero envolver-me cúmplice dos muros
e da côncava expansão do tempo,
até às praias distantes de um sossegado azul.
Assim me alongarei nas mãos da sombra imóvel
com o fogo do silêncio e a melancolia das colinas,
vivendo o instante de um dinamismo lento
em que estar é ser seguro na igualdade.
António Ramos Rosa , in  “Facilidade do Ar”

 A IX edição de "Sobre a Poesia" é feita com as palavras de António Ramos Rosa, um dos nossos maiores poetas da actualidade. Num texto excelentemente construido , o poeta reflecte, na 1ª pessoa, sobre a Arte Poética.

A poesia permite o acesso a uma dimensão essencial do homem
                                                                                   Por  António Ramos Rosa
"A palavra “Poesia” não é para mim uma palavra densa, plena, isto é, uma palavra de significação inteiramente positiva. Há nela um vazio, uma névoa e uma tenuidade que se sobrepõe ao seu significado e o torna vago e quase imperceptível. Posso comparar esta impressão à sensação que sinto quando, à distância, olho os prédios altos e percepciono não a densidade dos seus moradores mas o vazio infinito que anula todo o pretensiosismo da vida humana. A palavra “poesia” parece-me afogada irremediavelmente num vazio que dilui a sua significação e a torna longínqua e apagada, quase desprovida de sentido.
Mas não será essa diluição semântica, observou Mário, o que a torna extremamente poética, uma vez que, assim, é mais aberta e susceptível de nos transmitir o que há de inexprimível na poesia?
Sim, talvez tenhas razão, admiti, mas essa palavra confrange-me não sei porquê. Sinto uma espécie de pudor ou vergonha, como se a poesia fosse uma matéria interdita e, de algum modo, inadmissível.
Se é assim, objectou Mário, o que há de vago nessa palavra anula a pretensão ou imposição de um sentido dominante. Assim, o que há nela de impreciso vela o seu conteúdo e deixa-o indefinido. Por isso, essa palavra parece-me que não deveria suscitar nenhuma relutância pudica, porque é vaga e desprovida de um sentido positivo e determinado.
Olha, Mário, esta questão parece-me destituída de sentido, como se estivéssemos a discutir o sexo dos anjos. Porque não aceitar simplesmente que o nome de poesia é um nome que nos transmite o seu conteúdo sem suscitar qualquer problema? E já agora, para contrabalançar a tendência teorizante dos nossos diálogos, proponho-te que falemos de assuntos mais circunstanciais e mais ligados à realidade imediata e particular. Estou a referir-me à minha experiência de poeta e não tanto no seu processo específico como no que respeita às suas determinações externas e a algumas circunstâncias ou episódios da minha biografia enquanto poeta. Mário disse-me então:
 Estou perfeitamente de acordo contigo. E, se me permites, colocar-te-ei algumas questões relativas à tua biografia de poeta. Em primeiro lugar, quero perguntar-te como se processou em ti o início da prática da escrita poética? Foi um processo fácil e espontâneo ou uma elaboração difícil e dolorosa? Respondi-lhe:
Tenho uma certa dificuldade em explicar o que me levou à prática da poesia. O que sei de uma forma clara é que comecei a escrever porque amava os poetas que lia e com os quais me identificava ao ponto de os querer imitar. Este processo de identificação e de imitação determinou não só os primeiros poemas que escrevi mas também todos ou quase todos os poemas que até agora escrevi. Não tenho qualquer receio em afirmar que a originalidade dos meus poemas, sobre a qual, aliás, não tenho dúvidas, não é resultante apenas da singularidade do sujeito que sou mas também da confluência de inúmeras leituras que me estimularam e foram sempre decisivas na minha formação poética. Naturalmente, os meus primeiros poemas não possuíam nível poético e só mais tarde, depois dos vinte e cinco anos, logrei escrever poemas de uma certa qualidade, como, por exemplo, “O Boi da Paciência”, que escrevi de um jacto, no primeiro andar do café Chave de Ouro. Esse poema nasceu, inesperadamente, com uma violência e uma espontaneidade que me surpreenderam, e foi então que o poeta que sou, deu o seu primeiro passo. Esse poema, como, aliás, outros que escrevi posteriormente, não poderia surgir se eu não tivesse lido deslumbradamente a obra de Carlos Drummond de Andrade, que foi um dos primeiros poetas a influenciar-me juntamente com Paul Éluard. Seria uma questão impertinente pretender saber o que seria especificamente meu e o que seria a contribuição do autor de “A Rosa do Povo”. Esse poema foi o resultado imediato de uma dolorosa experiência humana que veio a encontrar a sua formulação graças à influência libertadora desse grande poeta brasileiro. Supor que a influência e a originalidade constituem uma dicotomia é um erro solipsista e uma perfeita idiotice. As influências são, já por si, resultantes de uma receptividade pessoal em relação a tal ou tal obra e não indiscriminadamente a qualquer autor. Ninguém poderia escrever um poema sem ter lido outro poeta. Supor o contrário é admitir que o poeta é um ser isolado no mundo e, por conseguinte, sem o conhecimento do mundo literário ou, no caso dos poetas populares, sem a existência de uma tradição oral. Mas se é assim, perguntou-me Mário, por que é que os escritores têm tanto receio das influências e de serem acusados de as sofrerem?
Penso, respondi, que esse receio se deve a uma falsa noção de originalidade que não tem em conta a sua relação com a confluência das obras que todo o escritor lê, a que não pode deixar de ser sensível e em relação às quais é sempre devedor. No que me diz respeito, esse receio não existe. Considero-me um poeta extremamente influenciável e até um pouco plagiador. Sobre alguns pequenos plágios que cometi em alguns dos meus livros, falar-te-ei daqui a pouco. Aliás, digo-te já que, sendo autor de alguns milhares de versos, me posso permitir cometer um ou outro plágio ou empregando outra palavra, talvez mais justa, uma ou outra incorporação, como o faziam os clássicos e, como por exemplo, Camões logo no primeiro verso de Os Lusíadas. Na verdade, sou extremamente receptivo em relação aos poetas que amo e admiro e os meus livros de poemas não seriam o que são, sobretudo alguns deles, se eu não tivesse lido determinados poetas que exerceram sobre mim uma atracção e um fascínio irresistíveis, tão irresistíveis como o desejo de os imitar e de integrar o que de novo eles traziam na minha escrita poética.
Verifico, porém, que esta fascinação que exercem certos poetas sobre mim e o decorrente desejo de os imitar não se traduz objectivamente numa obra destituída de originalidade e de cunho pessoal. Entre a obra que imitei ou tentei imitar e a obra que escrevi subsiste uma diferença essencial e é essa diferença que me leva a pensar que o meu livro possui a autonomia e a originalidade que considero imprescindíveis numa obra literária e que, de modo algum, foram prejudicadas pela influência que sobre ela exerceu outra obra. Pelo contrário, a influência pode ser decisiva para a descoberta da voz original do poeta que procura o seu caminho ou que, tendo-o encontrado, aspira a novos rumos para que a identidade se renove e se intensifique.
Estive todo este tempo a ouvir-te sem te interromper, disse-me Mário, porque quis ouvir a tua argumentação até ao fim, tão interessado estava nela. Estou de acordo contigo, embora tenha ficado um pouco surpreendido, porque nunca pensei que a originalidade e a influência pudessem ser compatíveis. E há muita gente, tanto poetas como leitores, que não pensa assim. E até em Estocolmo, se se soubesse que tu, de vez em quando, cometes um plágio, não te atribuíam o Nobel.
Sim, há muita gente que não estará de acordo comigo, porque acharia que a minha argumentação é paradoxal. Quanto ao Nobel, embora te pareça insincero, espero e desejo não vir a ganhá-lo, porque se isso acontecesse seria uma grande catástrofe para o meu sistema nervoso. O mundo da informação, e não só, cair-me-ia em cima, e lá se ia toda a minha tranquilidade, que tanto prezo. Além disso, penso que outros escritores seriam mais dignos desse prémio do que eu, como, por exemplo, Vergílio Ferreira, para só citar aquele que, além da originalidade e riqueza do seu estilo, possui uma dimensão filosófica que fez dele um grande pensador, e que nenhum outro escritor português possui. Reconheço a grandeza desse escritor e a de outros, que merecem o Prémio Nobel, mas, no que me diz respeito, embora seja suficientemente consciente do meu mérito, julgo que a grandeza não cabe a mim, sempre pensei assim, talvez por excessiva modéstia, e assim continuarei a pensar.
Voltando aos teus pequenos plágios, sugeriu Mário, porque não me dás um exemplo ou dois desses plágios ou “incorporações”, como também tu lhes chamas.
 Sim, concordei, não receio fazê-lo. Referirei dois casos interessantíssimos e sumamente engraçados. Estava a trabalhar com um tradutor, aliás excelente, na tradução de um livro que foi editado em França. A certa altura, o nosso trabalho incidiu sobre três ou quatro versos de um poema do meu livro Volante Verde. A versão que o tradutor fizera não me pareceu satisfatória e sugeri-lhe então que traduzisse literalmente aqueles versos para francês. Objectou-me ele, peremptoriamente, que nenhum poeta francês escreveria aqueles versos assim. Retorqui-lhe então: Mas foi um poeta francês que os escreveu: Yves Bonnefoy. Efectivamente, eu incorporara esses versos desse poeta e traduzira-os literal-mente, de tal modo que a retroversão literal para francês coincidia exactamente com o original. Assim, os versos que incorporara no meu poema voltaram à origem sem perderem a sua identidade. O outro caso não é menos interessante, mas é um tanto humilhante para mim. Estava um dia a ler um texto de um poeta francês, Pierre Dhainaut, na revista Gradiva, num número de homenagem a Octavio Paz, quando deparei com uma frase que me deslumbrou, por ser extremamente poética. Imediatamente a traduzi e transformei num pequeno poema que publiquei mais tarde num livro. Curiosamente, o editor, para dar uma amostra da poesia contida nesse livro, inseriu esse poema na contracapa dessa obra. Achei graça, mas senti que essa escolha significava uma desqualificação da minha poesia. No entanto, parece-me que a meia dúzia de plágios que fiz (o maior deles foi uma tradução literal de cinco versos) se justificavam na medida em que, e desse modo, actualizam virtualidades implícitas no contexto original. Mas eu sei que há quem não aceite esta explicação…
Voltando à primeira parte da nossa conversa, atalhou Mário, parece-me que, embora de uma maneira não explícita, tu deprecias a poesia e ao mesmo tempo deprecias-te a ti próprio como poeta e parece-me que estas duas atitudes talvez se relacionem uma com a outra.
Bom, retorqui, a minha noção de poesia nunca foi depreciativa. Pelo contrário… Sempre achei que a poesia permite o acesso a uma dimensão essencial do homem, que está atrofiada na sociedade actual, mas que é necessário manter viva para que o homem não seja reduzido à sua escravatura no sistema e para que possa um dia libertar-se dela e viver uma vida mais humana e mais livre. Parece-me que é a mais alta noção que se pode ter de poesia. Mas é, precisamente, por isso que a poesia não se circunscreve ao âmbito literário e aponta a uma realidade que é mais vasta e mais essencial do que ela própria. Digamos que a essência da poesia é revolucionária ou subversiva porque visa a mudança radical da vida. “Il faut changer la vie”, como dizia Rimbaud. No que me diz respeito, devo dizer-te que a minha auto-estima sempre foi deficiente, embora nos últimos tempos tenha subido um pouco devido a várias circunstâncias, talvez a uma certa maturidade e a uma melhor compreensão do meu próprio valor, para o que contribuiu, de algum modo, o reconhecimento de que tenho sido objecto. Mas isto é um problema pessoal que pouco ou nada interessa aqui. O essencial é a criação poética e é ela que me proporciona a mais profunda satisfação e me recompensa todas as vicissitudes e infortúnios, independentemente das homenagens e dos prémios, que têm vindo por acréscimo e, embora gratificantes, se situam na periferia e não no cerne da minha vida poética.”

António Ramos Rosa, in “Prosas Seguidas de Diálogos”,4 Águas


O Boi da Paciência
Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por demais sabido!

Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizarr de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?

Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros.Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar:Dêem árvores para um novo
recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me limpe o sangue!
Recomeçar!

Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões com duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em nome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele

Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como perservar este amor
ostentando-o na sombra
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
como uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?

Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão

A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!
- António Ramos Rosa, in “ Viagem através duma Nebulosa” 1960

2 comentários:

  1. Este artigo é mais um exemplo do excelente critério que rege a selecção editorial deste Blog. Sou um leitor assíduo e esta rubrica " Sobre a poesia" tem-se assumido como uma contribuição valiosa para a compreensão do acto poético.
    Apresento felicitações pelo trabalho, pelo culto da boa Literatura e da arguta visão do nosso tempo.

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  2. Quando se escreve ou fala de poesia já houve poesia... .V. P.

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