quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O império da certeza não faz parte da minha geografia

Herdeiros famélicos
Por Lêdo Ivo *
"Poeta e escritor, jamais me atrevo a falar em nome da tribo a que pertenço. E, de quatro em quatro anos, assisto ao movimento de cineastas gulosos, confrades frenéticos, apetitosas beldades electrónicas, patéticas donas de casa, vetustos professores inaposentáveis, instaladores de instalações e até jogadores de futebol e bola ao cesto que se reúnem buliçosamente para apresentar aos candidatos presidenciais um rol de reivindicações artísticas e monetárias.
Todos se proclamam intelectuais — o que não deixa de juncar-me de inveja, já que não sei onde começa e onde termina o intelecto, e o império da certeza não faz parte de minha geografia.
Nas reuniões tumultuosas, esse trivial fino das letras e artes, e prendas domésticas, exige aquilo que todo brasileiro, do mendigo ao banqueiro, reclama do Poder Público: dinheiro. Querem a pecúnia do Erário para custear filmes, exposições, sonetos, peças teatrais, jogos, viagens ao exterior (de preferência na classe executiva). Em nome da Pátria, pleiteiam um bom financiamento para as suas fantasias e pesadelos.
Descabe discutir aqui se ao Estado compete ou não sustentar tantos sonhos e ambições, se o seu papel deve ser o do mecenas esfuziante ou o de verdugo implacável. Desejo apenas notar, nesse catálogo de reivindicações, a ausência de um item que me parece relevante. Refiro-me ao problema do direito de imagem — nesta época da imagem e dos espectáculos vertiginosos — engastado na lei dos direitos autorais.
A actual legislação me proíbe de publicar as incontáveis fotos que possuo de Manuel Bandeira. Proíbe-me até mesmo de usar aquelas em que estou ao seu lado. Proíbe-me ainda de divulgar as cartas de Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Cardoso ou qualquer outro integrante do meu universo afectivo. Pela lei, elas não me pertencem, embora dirigidas a mim. Por 70 anos, pertencem a parentes de quem as enviou. Caso ouse expô-las ao sol, serei processado judicialmente. Para divulgá-las, a legislação me aponta o caminho da negociação monetária. Terei de pagar aos herdeiros, através de judiciosos agentes literários que não dormem de touca.
Fui amigo de Manuel Bandeira durante trinta anos. Ele era solteiro e solitário e não deixou nenhum descendente directo. Que herdeiros são esses, que jamais o visitaram em sua solidão? Não os conheci nem de vista nem de chapéu. E a sua situação é a mesma de outros poetas e escritores mortos.
Tenho uma reivindicação a fazer à enérgica Presidente Dilma Rousseff. Peço-lhe que incorpore a obra de Manuel Bandeira ao património nacional. Livre-a dos herdeiros famélicos, dos fominhas póstumos, e a entregue ao nosso povo."
Lêdo Ivo , in O Globo, 30/1/2011
*Lêdo Ivo é o quinto ocupante da Cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 13 de Novembro 1986, na sucessão de Orígenes Lessa e recebido em 7 de Abril de 1987 pelo académico Dom Marcos Barbosa. Nasceu no dia 18 de Fevereiro de 1924, em Maceió (AL).Poeta, jornalista, ficcionista, ensaísta, crítico literário é um dos maiores vultos da Literatura brasileira. Tem a sua obra traduzida em várias línguas e publicada em diversos países.
No Brasil, foi galardoado com o Prémio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, o Prémio de Romance da Fundação Graça Aranha, o Prémio Carlos de Laet da Academia Brasileira de Letras, o Prémio de Memória da Fundação Cultural do Distrito Federal e , em 2004, foi-lhe outorgado o Prémio Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro, pelo conjunto da obra.
No plano internacional, Lêdo Ivo é detentor do Prémio de Poesia del Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2008), do Prémio de Literatura Brasileira da Casa de las Américas (Cuba, 2009) e do Prémio Rosalía de Castro, do PEN Clube da Galícia (Espanha, 2010).
Lêdo Ivo tem representado internacionalmente a sua pátria, o Brasil, quer em Encontros culturais , quer em Congressos e Colóquios literários.


Minha Pátria
Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando
[sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas
[carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos
[e impaludados não param de
[tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
[muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.
Lêdo Ivo, In “As imaginações”, 1944.

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