segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Mas o céu não cairá

" Milhões de norte-americanos trabalham a tempo inteiro, todo o ano, para ganharem um salário de miséria. A jornalista Barbara Ehrenreich decidiu ir juntar-se às suas fileiras para descobrir como é possível subsistir”
Por cá a miséria já grassa há muito e a iniquidade de um salário baixo obriga a malabarismos desumanos.O ciclo crísico que se desenvolve vai  acentuar e aumentar as clivagens numa sociedade que tende a  bipolarizar-se apenas em pobres e ricos.

Quando as mães solteiras pobres tinham a opção de não entrarem no mercado de trabalho e continuarem a subsistir à custa da assistência social, as classes média e alta encaravam-nas geralmente com uma certa impaciência, se não mesmo repugnância. Os pobres dependentes da assistência social eram criticados pela sua preguiça, a sua persistência em se reproduzirem em circunstâncias desfavoráveis, os seus presumíveis vícios e, acima de tudo, a sua “dependência”. Aqui estavam eles, contentando-se com viver de “esmolas do Estado” em vez de buscarem a sua “auto-suficiência”, como todas as outras pessoas, através de um emprego. […] Mas agora que o Estado suspendeu em grande medida as suas “esmolas”, agora que a esmagadora maioria dos pobres labuta no Wal-Mart ou no Wendy’s – bem, agora o que havemos de pensar deles? A reprovação e a condescendência já não têm cabimento; qual é a forma de os encarar que faz sentido?
Com um sentimento de culpa, estareis talvez a pensar com desânimo. Mas a culpa não chega, de forma nenhuma; o sentimento apropriado é a vergonha – vergonha da nossa própria dependência, neste caso, dependência do trabalho mal pago de outros. Quando alguém trabalha por menos dinheiro do que necessita para viver – quando, por exemplo, passa fome para que nós possamos comer de forma económica e conveniente – então essa pessoa faz um enorme sacrifício por nós, concedeu-nos a dádiva de uma parte das suas capacidades, da sua saúde e da sua vida. Os “pobres que trabalham”, como são referidos de forma apreciativa, são de facto os principais filantropos da nossa sociedade. Negligenciam os seus próprios filhos para cuidarem dos filhos dos outros; vivem em casas sem condições para que as casas dos outros sejam reluzentes e perfeitas; aguentam privações para que a inflação continue baixa e os preços das acções subam. Pertencer ao grupo dos pobres que trabalham é ser um doador anónimo, um benfeitor não identificado de todas as outras pessoas. […]
Um dia, evidentemente – e não vou fazer aqui previsões sobre a data exacta – cansar-se-ão de obter tão pouco em troca e exigirão que lhes paguem o que merecem. Quando esse dia chegar haverá muita raiva e greves e perturbações. Mas o céu não cairá, e no fim de contas todos acabaremos por beneficiar.”
Barbara Ehrenreich, Salário de Pobreza, Ed. Caminho, 2007


 O Anticristo
             Por Friedrich Nietzsche

Os primeiros a cair, num terramoto,
são os ídolos de pedra, livrando-nos
do peso, não da culpa, que sentíamos
nos ossos. Mas já Deus não era um ídolo
nem nada, nesse tempo:
uma presença,
quando muito, embaraçosa, semelhante
ao napperon oferecido pela tia preferida,
e que corremos a sacar duma gaveta
quando vemos, aos domingos, sua gorda,
generosa silhueta projectada na vidraça
do almoço;
ou as quatro, cinco latas
de conserva de absurdo que guardamos
na despensa (apesar de caducada a validade)
para o dia, eventual, em que alimentos
estragados nos pareçam preferíveis ao jejum.

1 comentário:

  1. A maior GLÓRIA dos pobres é saberem erguer países, grandes, muito grandes!... - Varela Pires

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