sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Haiti sem ajuda

"13 de Janeiro de 2010: o sismo mais potente da história do Caribe: um terramoto de 7,0º na escala de Richter sacudiu o Haiti, provocando graves danos materiais e um número indeterminado de vítimas mortais (estimam-se cerca de 600 mil vítimas mortais - balanço provisório). Este foi o maior cataclismo da história deste país já fortemente assolado por outras catástrofes naturais."

Milhões de pessoas perderam as suas casas e dormem nos parques
                                  "Não basta apenas soerguer os fracos; devemos ampará-los depois."                              
                                                                                                                                                            Shakespeare

“Os doadores internacionais não devem esquecer o drama de 600 mil sobreviventes do sismo no Haiti que ainda vivem em acampamentos precários”, disse na Quinta-feira uma dirigente da ONU para assuntos humanitários. Em visita ao país mais pobre das Américas, devastado por um sismo em Janeiro de 2010, Valerie Amos mostrou-se preocupada com o risco de que as necessidades humanitárias do Haiti sejam negligenciadas por países ricos  centrados nos seus próprios problemas económicos.
Outros desastres, como a seca e a fome que afectam milhões de pessoas no nordeste da África, também exigem atenção. "Parte do meu trabalho é assegurar que não esqueçamos o Haiti (...). A situação das pessoas nos acampamentos ainda é muito crítica", disse Amos à Reuters “apenas metade da verba humanitária solicitada pela ONU para o Haiti neste ano foi disponibilizada.”
 Segundo cifras da Ocha (agência humanitária da ONU), o total necessário seria de US$ 382 milhões, mas só 199 milhões foram doados. "É uma causa que precisamos defender", acrescentou Amos.
O Haiti chegou a ter 1,2 milhão de desalojados por causa do sismo, mas o número já caiu pela metade. "Temos de apoiar 600 mil pessoas. Temos de melhorar o saneamento. Por causa da falta de verbas, algumas das ONGs nossas parceiras foram embora. Então as instalações não estão tão boas quanto já estiveram", afirmou a dirigente. "Isso é absolutamente crucial, porque se não resolvermos especificamente o saneamento teremos o reaparecimento da cólera."
Uma epidemia de cólera surgida em Outubro, meses depois da catástrofe, já matou mais de 6,3 mil pessoas no Haiti. A doença é transmitida principalmente por água contaminada. O sismo propriamente dito matou até 300 mil pessoas." Adaptado de  notícia em "Terra Brasil"

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Portugal

Portugal

Avivo no teu rosto o rosto que me deste
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso  aventureiro da ilusão,
Surdo às do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.

Miguel Torga, 16 de Dezembro de 1963, in " Diário X", volumes IX a XII , Círculo de Leitores

 “Portugal, the beauty of simplicity” é um filme de promoção turística do nosso país.  Produzido pela Krypton, foi distinguido, no dia 2 de Julho, em Varsóvia, Polónia, no Film, Art & Tourism Festival, na categoria “The best film promoting country, region or city” com o segundo prémio, entre 220 filmes candidatos. O autor da banda sonora é Nuno Maló.  A banda   está nomeada para os Jerry Goldsmith Awards 2011 na categoria de "Best Promotion Score" talvez pela peculiar e excepcional sonoridade que empresta ao filme.
"O músico português, que vive nos Estados Unidos, já foi premiado pela banda sonora de «Amália - O Filme», de Carlos Coelho da Silva, para a qual compôs vinte temas orquestrais interpretados pela Filarmónica de Budapeste. Este ano, recebeu nos USA, o prémio na   categoria de compositor revelação, onde além de Nuno Malo, estavam também nomeados os Daft Punk, Óscar Araujo, Arnau Bataller e Herbert Gronemeyer.
Nuno Malo nasceu na Madeira em 1977, estudou composição para cinema em Los Angeles e é autor de várias bandas sonoras de filmes lusos, entre os quais «Assalto ao Santa Maria», de Francisco Manso, «Contraluz», de Fernando Fragata, «O Julgamento» e «A Arte de Roubar», ambos de Leonel Vieira, «Filme da Treta», de José Sacramento, e «A Mulher Polícia», de Joaquim Sapinho. «A Profecia Celestina» (2006), de Armando Mastroianni, e «The Lost and Found Family» (2009), de Barnet Bain, foram produções internacionais para as quais compôs a música original. Já tinha sido antes distinguido pelo seu trabalho, com o Prémio de Composição Henry Purcell."

Portugal  (re)descobre-se na gente que o coloca na gávea do futuro . 

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Amazonas, o grande rio dos Mitos

Floresta na região do rio Negro, um dos principais afluentes do Amazonas; área protegida será de 47,5 mil hectares Jorge Araújo/Folha Imagem

Região onde nasce o rio Amazonas pode ser área protegida no Peru
"Os expedicionários que encontraram a nascente do rio Amazonas na cordilheira de Chila, no sul do Peru, em 1996, vão formalizar uma proposta para que a região seja declarada área natural protegida peruana. O objectivo, anunciaram em entrevista à imprensa, é preservá-la da mineração.
A expedição Amazon Source 96 localizou a origem do rio Amazonas no desfiladeiro de Apacheta, a mais de 5.000 metros de altura. O grupo era chefiado pelo investigador polaco Jacek Palkiewicz e tinha integrantes da Sociedade Geográfica de Lima.
O presidente da Sociedade, Zaniel Novoa, disse que neste ano entregará considerações técnicas às autoridades da província de Caylloma, e do governo regional de Arequipa, onde Apacheta está localizado, para que eles façam a solicitação formal ao governo central.
O estudo técnico deve conter argumentos de importância geográfica e cultural, e falar da necessidade de preservar a área da actividade mineradora, considerou Novoa.
Para ele, a declaração de área protegida "se justifica porque representa a origem do maior rio do planeta e do maior sistema hidrográfico do mundo".
As autoridades de Caylloma esperam que o estado declare como área natural de protecção um terreno de 47,5 mil hectares, com um conjunto de nevados da cordilheira Chila, lombadas, vales glaciais e lagoas.
Os representantes da mineradora Bateas, filial da canadense Fortuna Silver Mines, que tem lotes nos arredores, afirmaram que não explorarão a área depois que a situação do local for definida.
Palkiewicz lembrou que a sua pesquisa foi confirmada no ano passado com a informação do satélite coreano KOMPSAT-2, que verificou a ausência de saída de água na lagoa ao pé do nevado de Mismi, uma teoria sobre a origem do rio Amazonas defendida pela revista "National Geografic".
Os expedicionários visitaram a região no último fim de semana, para participar da inauguração de um monumento que marca o início do rio Amazonas no desfiladeiro de Apacheta, organizada pelas comunidades camponesas do local.
Novoa também acredita que a declaração de área protegida permitirá aos habitantes locais, dedicados actualmente à pecuária, se incorporem à actividade turística, já que o lugar deve fazer parte do circuito de visitas estrangeiras."In" Folha.com",S.Paulo, Brasil, em 15/09/2011

"Las poblaciones y lenguas del río llegaron del mar. Lo narran los distintos pueblos en el mito compartido de las grandes anacondas"

                                                   "Antes da grande nação...já eras tu...
                                                   a nação primogênita
                                                   filha dos filhos da mata.
                                                  A infância da pátria foste tu,
                                                  sílaba aborígine, idioma tupi
                                                  cerâmica, canoa e tacape
                                                  ritual, dança e canção.
                                                 Foste tu a raiz, sangue ameríndio
                                                 o parto da nacionalidade."
                                                      Manoel de Andrade,"Amazónia",in "Cantares",Ed.Escrituras,Brasil

"Babelia" do Jornal "El País" dedicou uma série de artigos sobre o poder, influência, determinismo, inspiração, fascínio que este imenso e mítico lençol de água tem provocado e exercido ao longo do tempo.
Pelo interesse do tema e pelo momento em que a sua nascente vai ser proposta como área protegida, transcrevemos um excerto de um artigo que poderá ser completado pela consulta do site assinalado.
Amazonas, o grande rio dos Mitos
"En las novelas que transcurren en el Amazonas la tierra no es paisaje, sino el personaje más poderoso.(...)La literatura del mundo amazónico ha sido en cinco siglos un largo diálogo de mitologías. Las que concibieron en centenares de lenguas los diez millones de nativos que habitaban sus orillas a la llegada de los europeos, y las que aportaron el español y el portugués, que se consolidaban entonces y que con la aventura americana se convirtieron en grandes lenguas planetarias. Hay que leer El hablador, de Mario Vargas Llosa, o Macunaíma, de Mario de Andrade, para sentir la complejidad de los mitos indígenas y el modo libre, audaz y conmovedor como la sensibilidad mestiza los interroga y los transforma en inquietantes parábolas de la modernidad. "Una lengua", escribió Jorge Luis Borges, "es una tradición, un modo de sentir la realidad, no un arbitrario repertorio de símbolos". Los mayores idiomas nativos de la región son el ticuna, el shipibo-conibo, el guahibo y el warao, pero, aunque decrecientes en términos demográficos, ahí están el tupí-guaraní, el mbyá, el kaiwá, el pai tavytera, el chiripá, el omagua, el ñengatú, las lenguas boras como el muinane y el miraña, y las huitoto como el ocaina, el nipode, el meneca, el murui, el nonuya y el coixoma.
Innumerables son las recopilaciones que se han hecho de tradiciones, relatos, mitos y sueños indígenas, pero podemos mencionar Los piros, relatos recopilados en el Perú por el sacerdote español Ricardo Álvarez en 1960; los Mitos e historias aguarunas, recopilados por José Jordana Laguna en 1974; La verdadera biblia de los cashinahuas, cuentos recopilados por el antropólogo francés André Marcel d'Ans en 1975, que ha sido llamada "Las mil y una noches del mundo indígena amazónico"; El universo sagrado, recopilado y reelaborado por Luis Urteaga Cabrera, de Cajamarca, quien convivió diez años con los indígenas shipibos; y las recopilaciones Yaunchuck I y II que recoge la literatura oral de los jíbaros huambisa, publicadas en 1994.
El puerto de Belém, ciudad brasileña de millón y medio de habitantes y principal punto de entrada al Amazonas.
JAVIER REVERTEA

En la región brasileña y venezolana, el etnógrafo alemán Koch-Gruneberg recogió las leyendas e historias de los indígenas taulipangues y arecunás, que dieron a conocer un mundo rico de imaginación y de conocimientos e inspiraron en Brasil a Mario de Andrade, en una semana inolvidable de 1928, su novela Macunaíma. Es una rapsodia que mezcla el espíritu de los romances medievales y la atmósfera de las ciudades fantásticas con el ritmo de la novela picaresca para producir una de las grandes fusiones literarias contemporáneas. Su decurso es ejemplar por los rumbos que abre para la imaginación: el héroe Macunaíma, de la tribu de los tapanhumas, vence a Cí, la reina de las amazonas, la convierte en su esposa, y se apodera de la Muiraquitá, la piedra en forma de caimán que da la felicidad. Un traficante de São Paulo, Venceslau Pietro Pietra (que es en realidad el monstruoso gigante Piaimá), roba el talismán y hace que Macunaíma y sus hermanos Maanepe y Jiqué vayan a la ciudad a buscarlo y allí lo derroten. El héroe recupera el talismán, pero al volver no encuentra ya su aldea, que ha sido devastada. Le cuenta toda su historia a un papagayo, antes de convertirse en una de las estrellas de la Osa Mayor, y el narrador confiesa al final que es aquel papagayo quien se la ha contado. "WILLIAM OSPINA 20/08/2011, In “ El Pais”, “Babelia
Leia o artigo integral: El gran río de los mitos

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Vitorino Nemésio (II) e (III)

A VOZ SUPLICANTE DO ILHÉU (II)
Por Varela Pires
Voltemos a Vitorino Nemésio.
Mau Tempo no Canal ” é simultaneamente o centro do julgamento da clausura insular e o acicatado desejo de fuga, no principal romance da viagem eterna de todo o ilhéu ao encontro da sua ilha perdida, reflectindo também os sonhos e os desejos que formaram o carácter de Nemésio.
É na tensão existente entre essa “ilha perdida” que todo o açoriano procura os seus dias futuros, constrói o seu projecto de vida. E Nemésio não poderia ficar indiferente a essa obsessão da Língua, à pronúncia característica, como uma carícia, às suas potencialidades, verdadeiro elo de ligação de todos, vivendo a dor do isolamento que o discurso poético se povoa de vivências carregadas de emoção.
“Meus degraus ainda têm a passada do adeus. / Lá, quando uma palavra cria tudo / E o resto, fechada a porta, / É posto nas mãos de Deus.”
O verso de Vitorino Nemésio é a emoção em si, a renúncia escrita nas vagas de um oceano que é mais de partida do que de chegada, uma singular tristeza sempre escondida pela bruma de um choro em fundo, tão permanente e soletrado como o céu espelhado nas caldeiras vulcânicas.
Seria loucura nossa pretender escrever sobre a obra de Nemésio num modesto artigo… Contudo, há dias, folheando apontamentos, deparámos com um belo poema dos últimos anos de vida do poeta, poema que em tempos nos merecera atenção especial, numa palestra que então proferimos em Angra do Heroísmo, na sua Ilha Terceira, nos Açores.
Vitorino Nemésio fora mação (entrara na Maçonaria aos 28 anos, quando termina o curso de Filologia Românica em Coimbra), e depois de tremendas crises religiosas (ele fora educado desde o berço por seus pais e avós na religião Católica…), já para o fim da vida, inconformado, “pede misericórdia a Deus - Pai”, ao mesmo tempo que se especulava no meio universitário a sua inesperada reconversão ao espírito cristão. Todavia, tudo isto é sempre uma questão do foro íntimo… Não nos vamos prolongar.
Eis, pois, o seu enternecedor poema a que deu o título “Prece”:
“Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado, / Como quem deixa à porta o saco para o pão. / Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado. / O que for, assim seja, à tua mão. / A tua vontade se faça, a minha não.”
“Senhor, abre ainda mais o meu lado ardente, / Do flanco de teu Filho copiado. / Corre água, tempo e pus no sangue quente: / Outro bem não me é dado. / Tudo e sempre assim seja, / E não o que a alma tíbia só deseja.”
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer, / Que com pontas de fogo o podre se adormenta. / O teu perdão de Pai ainda não pode ser, / Mas, lembra-te que é fraca a alma que aguenta: / Se é possível, desvia o fel do vaso; / Se não é, beberei. Não faças caso.”
Este poema escrito pelo poeta, por Vitorino Nemésio, por um homem resignado e suplicante, poema incluído em “O Verbo e a Morte”, é acima de tudo o “Eu” que reflecte a solidão e o conformismo perante as leis da vida, atingindo o zénite no momento que a morte se prepara.
Há nele a presença da luz que o exame de consciência traz, num gesto confessional de quem se encontra já no patamar da transição de uma vida para uma outra existência enigmática e desconhecida, sede de um provável juízo final, onde as almas serão julgadas pelo que fizeram ou deixaram de fazer na altura própria, na sua existência terrena.
É um poema que carrega um pausado e natural cansaço, um desespero e pessimismo finais, de quem está acabando de cumprir, mal ou bem, uma vida corporal, demasiado rente ao chão.
Extasia-nos esta poesia vertical, cheia de musicalidade intrínseca, que insistentemente aponta para o alto, mesmo quando o homem de que fala não consegue libertar o seu corpo da terra em que acabará por tombar, no sepulcro em que terminará por se confundir, por vir a ser nada, nada tendo sido.
Estamos perante um poema – oração, plasmado de humilde e humilhada sinceridade, com as cores pálidas e chagosas do que é julgado perante Deus, desfalcado, esperando o perdão do Rei do Universo a quem chama Pai, e de quem em última instância espera o perdão final e único.
                    MESTRE VITORINO DA PRAIA (III)
              Vitorino Nemésio
Escritor, poeta, filósofo, pensador livre, jornalista, professor universitário, conferente, académico. Um português ilustre.
Mação, também, como se frisou em artigo anterior, desde a sua juventude percorrida na universitária Coimbra, mas um mação talvez pouco convicto.
No entanto, Nemésio acaba os seus dias num grande e emocionante reencontro com o Deus da sua infância, entrevisto na piedade do meio familiar, onde a missa dominical e a reza diária do terço era obrigação imperdível. Com o Deus apreendido na comunidade cristã de Vila Praia da Vitória, o Deus insular, retratado na vida piedosa daquelas santas tias que o mimaram de uma forma inesquecível, almas espectrais memorizadas em diversos percursos da obra literária de Nemésio.
“Tua vontade se faça, a minha não.” (…) “O teu perdão de Pai ainda não pode ser.”
Como o Crucificado no Calvário, o poeta implora um possível perdão, um possível afago, numa cadência arrastada de arrependimento e verdade, na forma dialogal, donde a palavra poética de que o verso é tecido emerge isenta da poalha com que se vestiu no mundo: “Mas lembra-te que é fraca a alma que aguenta: / Se é possível, desvia o fel do vaso; / Se não é, beberei. Não faças caso.”
Oração da hora da abalada, acto de contrição nimbado de uma acolhedora réstia de fé, de confiança quase cega, de abandono nas mãos do Eterno.
Nascido do húmus, crescido nesse basalto negro de formas caprichosas, surgido da bruma incessante das Ilhas, percorrida a vida, a vida toda, o poeta suspira pelo amor ou pela criação.
Suspira por ser elevado à condição divina, depois de cumprido o caminho, de um longo peregrinar de sonhos e quedas, feito de aprendizagem e do erro, do prazer e do sofrimento, das múltiplas vivências inesquecíveis.
Agora, nada mais fica, nada mais resta ao poeta e ao homem que aparecer perante Deus, perante o Criador, munido do saco para o pão, do saco vazio, como mendigo e suplicante, saco de quem esbanjou as manhãs e as tardes e as noites e chegou impreparado à hora em que se define o problema da salvação, em que nenhum outro credo importa, a esse momento de prestar contas de cristão, contas de cristão arrependido.
Aguarda a tolerância, a bondade misericordiosa do Divino, porque vai em busca da prometida felicidade escrita nos Evangelhos.
Fica-nos, pois, escutado este dialogado e rezado poema, o tom sublime da precariedade no melhor que a poesia de Vitorino Nemésio nos pode oferecer, em termos de comunicação coloquial, confessional.
O Professor Doutor Vitorino Nemésio, de seu nome completo Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, fará a 19 do próximo mês de Dezembro cento e dez anos que nasceu nos Açores, na Vila Praia da Vitória. E mais. No próximo ano, em 2012, a 20 de Fevereiro completar-se-ão 34 anos sobre a data do seu falecimento no Hospital da CUF, em Lisboa.
É bem certo o aforismo que diz que o homem nasce onde nasceu e irá morrer onde nunca esperou morrer. Como Vieira, sete palmos de terra para nascer, e um mundo inteiro para morrer…
Que se tem projectado a nível nacional para comemorar tão ilustre cultor da Língua Portuguesa, tão inigualável conversador, poeta, escritor, e professor? De momento, não temos conhecimento de qualquer projecto, nem no âmbito nacional, nem no âmbito regional, mais propriamente nos Açores.
Nemésio. Senhor de uma vastíssima e diversificada cultura, génio da palavra escrita e da palavra falada, hoje relembrado com saudade por gerações de alunos universitários, de amigos, de admiradores. Muitos fora do país.
Vitorino Nemésio no convívio privado era galhofeiro, gostava da brejeirice, da anedota, da pequena história, de evidenciar os seus admiráveis dotes de observação. Alegre, também. Sim! Porque, parafraseando São Francisco de Sales, um professor triste não passa de um triste professor, não é?!...
Nemésio. Por vezes, não se levava muito a sério, a ele próprio… Todavia, era perspicaz, e sentia-se à vontade no convívio alegre e franco quer com os seus colegas, quer com os seus estimados alunos. Sobretudo, impressionava o seu respeito pelo aluno, e pelo trabalho de investigação que o mesmo desenvolvia.
Em suma. Um homem sério, sabedor, dotado de uma irrequietude de espírito que impressionava.
Mestre (sábio) Vitorino Nemésio. Mestre?!... Porém, Vitorino não gostava que lhe chamassem “sábio” ou “mestre”… Porque, para ele, Mestre, verdadeiro Mestre tinha seu avô, pescador, homem grande, toda uma vida dedicado à faina do mar. E a provar isto, esta asserção, a replicar a memória do seu versejar espontâneo, aí estão á laia de exemplo os versos da sua autoria e de índole biográfica, com que terminamos…
“Mestre Vitorino da Praia, / Meu avô, homem discreto? / Para que levaste o tino… / Que não deixaste ao neto?...”
O título desta crónica aplica-se, por conseguinte, ao avô de Vitorino Nemésio, o “Mestre Vitorino da Praia”…, embora todo o conteúdo da mesma continue a celebrar os cento e dez anos do nascimento dessa grande figura da cultura portuguesa que foi o Professor Doutor Vitorino Nemésio.
VARELA PIRES

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Do Brasil

COLUNA DA REVISTA O GLOBO (25/09/2011)
Discursos
"Em pronunciamento na ONU, na semana passada, a presidente Dilma estreou, internacionalmente, uma palavra que vem usando insistentemente no Brasil: “malfeito”. “Meu governo não terá compromisso com o malfeito”, disse ela. Todo mundo sabe que, quando diz “malfeito”, a presidente está usando um eufemismo. Ela se refere à “corrupção”. Mas, aparentemente, Dilma não quer admitir, pelo menos publicamente, a possibilidade de que haja corrupção em seu governo.
A presidente vai me desculpar, mas malfeito e corrupção não significam a mesma coisa. De acordo com os dicionários, malfeito é “feito sem perfeição, mal executado, imerecido, injusto”. É uma definição suave para o que levou à demissão recente de alguns ministros de seu gabinete. Já o significado de corrupção justifica plenamente a saída da trupe ministerial: “Ato ou efeito de corromper, de fazer degenerar, depravação; ação de seduzir por dinheiro, presentes etc, levando alguém a afastar-se da retidão”.
O que há mais no poder de hoje no Brasil é alguém afastando-se da retidão. E não dá para confundir isso com malfeitos.
Um cafezinho pode ser malfeito, mas dificilmente será considerado corrupto. Um ministro pode ser corrupto, mas é pouco provável que seja malfeito (se bem que, em alguns casos, a natureza tenha até contribuído para que alguns sejam considerados assim, Mas todo mundo sabe que não é isso que Dilma quer dizer).
Dilma é mestre em fazer discursos com palavras da moda que supostamente dão mais valor ao que ela diz. Ela chama “rede social” de “ferramenta” e insiste no verbo “disponibilizar”.
No Brasil, políticos têm mania de não utilizar a palavra certa. O PT, por exemplo, prefere chamar de “regulação da mídia” o que é, na verdade, “censura à imprensa”.
Nesta questão, a gente não pode se queixar do presidente Lula. Ele fala exatamente o que quer dizer. No mesmo dia em que Dilma disponibilizava seu discurso na ONU, Lula dava declarações objetivas em Salvador. “O político tem que ter casco duro”, ensinou. “Ela vai passar a vassoura”, disse, referindo-se a Dilma, mesmo sabendo que ela não gosta de ser chamada de faxineira.
Há algo, porém, que irrita mais do que os malfeitos de Dilma ou os cascos duros de Lula. É uma expressão que atacou as autoridades do Rio e parece um mal sem cura. Quando um bondinho de Santa Teresa descarrila matando seus passageiros ou quando um paciente em estado grave passa oito horas seguidas batendo de porta em porta tentando entrar num hospital público, a declaração da autoridade é sempre a mesma: “Vou abrir uma sindicância para apurar os fatos”. É um eufemismo também. O que eles querem dizer é “não vai acontecer nada”. E fica tudo como antes até a próxima tragédia com os transportes públicos ou a próxima displicência revelada pelos hospitais da rede pública. Como diria a presidente Dilma: Isso é que é malfeito." Artur Xexéo, In Jornal Globo (26/09/2011)

domingo, 25 de setembro de 2011

Ao Domingo há música

Num tempo em que Angola, a terra quente dos horizontes em fogo, tem sido notícia, fomos registando alguns apontamentos sobre este país. Angola, que foi terra sofrida  de destinos incertos , vai-se afirmando como terra de encontro e descoberta de novos horizontes.
Destacámos, em registos anteriores,   algumas das suas especificidades poéticas e musicais que  revelam a sua singularidade. E, para que se prossiga na descoberta dessa imensa Angola , a  rubrica de Domingo é -lhe também dedicada.

Poesia Africana

Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha dos olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
Agostinho Neto, in “No reino de Caliban II -  antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa"


Canção para Luanda
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nos:
- Luanda onde está?

Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos

- Xê
mana Rosa peixeira
responde?

- Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!

"Ola almoço, ola almoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé"

- E você
mana Maria quitandeira
vendendo maboque
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
"maboque, m'boquinha boa
dóce dócinha"

- Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
para vender!

Zefa mulata
o corpo vendido
batom nos lábios
os brincos de lata
sorri
abrindo o seu corpo
- seu corpo-cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e de dia.
- Luanda onde está?

Mana Zefa mulata
o corpo-cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
- precisa comer!

- Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casa antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
trator derrubou?

Meninos das ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?

- Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
- Luanda onde está?

Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
- os panos pintados
garridos
caídos
mostraram o coração:
- Luanda está aqui!
Luandino Vieira in,”No reino de Caliban II -  antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa”

O talento e  a voz  de Waldemar Bastos , acompanhados por The London Symphony Orchestra, celebrando a musicalidade angolana  na canção "M'Biri M'Biri" do álbum "Cânticos da minha alma".
Em "Cânticos da minha alma” Waldemar Bastos confirma o ambicioso projecto de internacionalização da música angolana, iniciado com o CD “Estamos juntos”, gravado no Brasil em 1984. Parcialmente gravado com a Orquestra Sinfónica de Londres, que teve participação nas canções “Velha Chica”, “Perto e longe”, “Mbiri-mbiri” e “Aurora”, Cânticos da minha alma absorve as raízes do cancioneiro angolano, num diálogo artístico de inclusão da música erudita com os clássicos da Música Popular Angolana, reutilizando, sobretudo nas teclas e na erudição das cordas, as vertentes mais ousadas da estética musical contemporânea."

sábado, 24 de setembro de 2011

Que fazer sem ti?


Era em Setembro nos anfiteatros vazios,
na alameda que subia para onde nos deviamos encontrar,
e não estavas; era um outono que caía sobre
as árvores do estádio, empurrando-lhes
as folhas para cima da mesa da esplanada, onde está vazia a mesa em
que as minhas mãos deviam procurar as tuas; era
a tua ausência em todos os lugares em que eu sabia
que poderias estar à minha espera, e só a sombra
das nuvens me trazia a memória da tua passagem, como
se fosses a ave que parte quando o primeiro sopro
do inverno se anuncia.

Que fazer sem ti, nestes anfiteatros de bancos
vazios, nos corredores melancólicos que levam para
átrios e pátios, nesses relvados onde não vale a pena
sentar-me, perguntar-te se gostas do outono, ou dizer que
os teus olhos é que valem a pena, agora que vejo, neles,
as nuvens que correm para o sul? E tu, sem estares aqui,
dizes-me que não é preciso que eu me lembre de ti; que
estás para chegar, de trás das árvores do estádio, para
limpares de folhas a mesa da esplanada, e pedires-me que
pegue nas tuas mãos, como se o inverno
não estivesse para chegar.

Mas um cansaço antigo prende-me a estes bancos
de anfiteatro; uma indecisão de passos empurra-me por
corredores e salas, em busca de um bar que fechou
há muito; o vento varreu as folhas da mesa
da esplanada, tirando a única justificação para que venhas. Abro,
então, as gavetas do passado. Tiro cartas, fotografias,
poemas, o livro em que me escreveste a frase interrompida
do amor. Como se eu não soubesse que as nuvens encheram
de sombra todas as imagens; que os pássaros levaram
para o sul tudo o que tinhas para me dizer; que
as folhas no chão cobriram o teu corpo, antes que
o inverno tivesse de o fazer.
Nuno Júdice in “Cartografia de Emoções”, Ed. Dom Quixote, 2001

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ética, Sofrimento e Vida


A Ética e o sofrimento na perspectiva da neuro-biologia humana moderna
"A relação entre o cérebro e os desempenhos especificamente humanos foi suspeitada desde a antiguidade clássica, aflora em alguns filósofos como uma verificação de facto, mas é prejudicada pelo total desconhecimento da estrutura e do funcionamento do sistema nervoso central, nesses tempos antigos.
Na cultura hebraica os desempenhos especificamente humanos eram atribuídos a uma acção de Iavé, descrita como uma insuflação nasal, que se distribui por todo o corpo do homem, dando-lhe capacidades que o simples sopro vital não conferia aos outros seres vivos. Ao assinalar esta diferente intervenção de Iavé sobre os seres vivos criados a narrativa bíblica fixa, por escrito, o conceito, já presente durante todo o período mítico-oral, da diferença entre os seres vivos, humanos, e os outros animais. Esta noção encontra-se registada em textos de outros povos da Mesopotânia, contemporâneos da bíblia hebraica, fazendo parte integrante do mito fundacional e da relação entre o ser humano e a transcendência.
David Abram no seu notável e profético livro “The spell of the sensuous”, dá uma rigorosa interpretação dos termos usados na escrita do Génesis, que vou comentar porque nos introduz, directamente, na questão central da minha breve apresentação e que é a da relação entre cérebro e os desempenhos humanos que lhe são específicos.
Diz David Abram que os hebreus tinham a mesma palavra para significar espírito e vento que era a palavra ruach. O carácter primordial de ruach e a sua íntima associação com o divino torna-se evidente logo no início do texto bíblico quando este refere que “antes de serem criados o céu e a terra e tudo estava vazio e escuro, a presença de Deus era assinalada pelo ruach (vento ou espírito) sweeping over the water. A Bíblia em língua portuguesa, dos Frades Capuchinhos, diz “o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas” (Gen. 1-2).
David Abram que é um especialista das mitologias dos índios Navajos encontrou nestes o mesmo carácter primordial do ar em movimento. Cito “O vento existia primeiro e quando a Terra começou a existir o Vento tomou-a a seu cuidado”.
Por causa deste duplo valor semântico da palavra ruach, vento e espírito, a respiração é considerada como a mais íntima e elementar forma de ligação entre os humanos e o divino, flui directamente entre Deus e o Homem e é desse fluir que resulta a vida. Mas, ao referir-se ao ser humano, o texto bíblico não usa ruach, que deve entender-se como espírito de vida em geral, mas usa neshamah para significar um aspecto mais pessoal e individualizado do vento, do ar inalado por uma determinada pessoa. Neste sentido neshamah significa a percepção individual ou seja a consciência perceptiva. Recebida de Iavé (Gen. 2-7)
Devo ainda referir que as raízes gregas e latinas das nossas palavras actuais relacionadas com a consciência, como alma, espírito e psique, são todas relativas a sopro, a vento, a ar, a respiração. “Spiritus spirit ut vuld”, o Espírito sopra onde lhe apraz.
Esta noção de que a consciência perceptiva humana é um mistério de origem divina expandiu-se durante séculos pelos países de tradição hebraico–cristã e era algo em que não se devia tocar porque seria entrar no âmago sagrado da relação entre Deus e os homens e, portanto, seria como que um sacrilégio.
Por isso quando Augusto Comte, proclamou, como sequência da sua famosa teoria dos três estados, que “o cérebro segrega o pensamento, como o fígado segrega a bílis” suscitou uma reprovação quase universal.
Acresce que, já no século XIX e depois no século XX, o progresso no conhecimento científico da estrutura e das funções dos nossos outros órgãos permitiu construir uma imagem corporal cientificamente coerente e biologicamente exacta. O cérebro, porem, continuava fechado à investigação como se o mistério da consciência perceptiva inibisse a intervenção da consciência cognitiva.
Foram as descobertas absolutamente seminais de Ramón y Cajal, no plano da morfologia microscópica do cérebro, que permitiram criar um novo paradigma e abrir o cérebro a uma investigação científica, primeiro descritiva, que foi fundamental, e depois morfo-funcional, atingindo na última década, chamada a década do cérebro, um tal volume de artigos científicos publicados que leva a considerar as neuro-ciências como o maior campo de investigação científica moderna.
A mudança de paradigma provocada por Ramón y Cajal, mudança que, mais tarde, Kühn havia de considerar como o verdadeiro motor do progresso científico, resultou da observação de Cajal de que as células que constituíam o cérebro eram células livres que comunicavam entre si por longos prolongamentos interconectados.
Deste novo paradigma morfológico nasceu um novo paradigma funcional: as actividades cerebrais não resultam da acção directa de uma célula ou grupo de células mas sim da rede que entre si todas as células nervosas constituem. Esta nova concepção e o aparecimento de equipamentos, - para além do velho electro-encefalograma que já foi um progresso – de equipamentos que permitiram conhecer, e ver, o tempo e o modo das activações das redes neuronais, constituem, hoje, um vastíssimo acervo de conhecimentos da neuro-fisiologia da percepção sensitiva e sensorial.
E, depois, a descoberta das moléculas químicas que percorrem as redes neuronais, activando-as e desactivando-as, tornou possível intervir sobre o funcionamento cerebral, inibindo-o ou estimulando-o, e compreender o mecanismo de certas alterações comportamentais como o agora tão falado síndroma de hiperactividade infanto-juvenil ou a depressão ligeira.
Mas será que há, já, uma compreensão neuro-biológica do sofrimento?
(…)Então, tudo começa com um estímulo que atinge o sistema perceptivo, sensitivo, sensorial e extra-sensorial – um rosto, um som, um odor, uma palavra, uma picada, um corte, um esmagamento, o frio, o calor, a pressão atmosférica, que sei eu – e que gera uma percepção neuronal, em regra complexa, à qual se segue uma representação: pela emoção, pela consciência da emoção, pela coloração afectiva e pela análise racional.
(…)A palavra dor é simultaneamente o nome da emoção e a designação do sentimento que provoca.
A análise afectiva do sentimento, efectuada pelo que Goleman chama inteligência emocional, e a análise racional, finalmente efectuada pela inteligência reflexiva e simbolizadora, dão uma ampla interpretação ao sentimento dor e preparam-no para ser arquivado na memória consciente como sofrimento, com carga afectiva negativa – isto quando o sentimento não se furtou a ambas as análises e foi aninhar-se, rapidamente, na sub-consciência, porque então tudo pode complicar-se no futuro.(…) Damásio também reconhece que a construção do que chama consciência nuclear tem um suporte neuro-biológico – que é todo o mecanismo da percepção externa ou interna e consequente geração de imagens, sem palavras; mas, ao tentar subir para a compreensão da consciência nuclear, usa a metáfora da cartografia cerebral para dizer que as percepções dos objectos levam à constituição de mapas próprios que interagem com os mapas corporais gerando imagens mentais que pertencem à categoria dos sentimentos.
Para que, em cada ser humano, se manifeste a consciência do mundo objectual e a consciência do eu que conhece, do self, do soi même, afinal da auto-consciência é preciso um cérebro humano normal e progressivamente estimulado desde a vida intra-interina, cérebro que o eu, constituído por um processo que nos é, ainda hoje, totalmente desconhecido, possa usar, gerando, por sua vez, uma realidade virtual a que tenho chamado autobiografia.
Ora é este ser auto-biográfico que tem conteúdos conscientes, memorizados e evocáveis, e conteúdos sub-conscientes, que vai usar a qualidade ética da sua inteligência para defrontar o sofrimento.
A categoria ética da inteligência permite ponderar valores pessoais para decidir. E os valores não são mais que conteúdos da autobiografia de cada um, chamados ao campo da auto-consciência, para que a inteligência emocional e racional os avalie, ponderando a sua carga afectiva e o seu peso heurístico. As percepções ao serem arquivadas como valores, constituem, em cada pessoa, a sua experiência de vida e são estruturantes da autobiografia.
Um faquir indiano que se deita em cima de uma cama de pregos aguçados para poder ganhar o sustento diário, tem dor, por estímulo neuronal, mas não tem sofrimento, por decisão ética, tomada livremente na sua auto-consciência.
(…)Pelo contrário. É possível construir, no campo da auto-consciência, um sofrimento imenso, sem nenhuma dor física, sempre que a ponderação ética dá o primado a valores autobiográficos negativos, destruidores, mesmo catastróficos, conscientes ou que emergiram subitamente da sub-consciência e ocuparam todo o espaço do campo virtual onde tudo, afinal, acontece.
A capacidade ética de lidar com o sofrimento depende, portanto, da experiência de vida de cada um.
As terríveis imagens de sofrimento silencioso das crianças africanas com fome e das mães, de peito seco e sem nada para lhes darem, comparadas com as das crianças que nos bons e caros restaurantes deitam a comida fora, fartas e com a complacência das mães, entretidas com bisbilhotices, dão-me para acreditar que a experiência de vida, a autobiografia, condiciona a resposta ética ao sofrimento pessoal.
E nós, que nos consideramos bem equipados com os valores sociais, os grandes pilares da ética social, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a dos Direitos das Crianças, o que é que somos capazes de fazer pelo sofrimento dos outros?
Esta é, para mim, a pergunta-chave, a pergunta radical num debate sobre ética, sofrimento e vida."
Daniel Serrão,in XIX Encontro de Filosofia – Coimbra, 10 de Fevereiro de 2005

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Morreu Júlio Resende

«O Desenho é expressão de um consciente que o particulariza»
                                                                                                 Júlio Resende

Júlio Resende morreu ontem, em Valbom, Gondomar, aos 93 anos na casa da sua Fundação.
Júlio Resende nasceu a 23 de Outubro de 1917 no Porto e começou a frequentar a Escola de Belas-Artes, em 1937 .  "... Mas eu queria, efectivamente, ser pintor!Talvez o destino me tenha proporcionado o primeiro passo. Aurora Jardim, figura conhecida nos meios literários e jornalísticos do Porto, intercedera junto do pintor Alberto Silva que dirigia, então, a Academia Silva Porto, para que eu viesse a frequentar as lições de pintura aí ministradas. Comprei a primeira caixa de tintas «a sério», e aprendi a colocar as cores na paleta, segundo as boas regras."- ( em  Memórias no Lugar do Desenho).
Júlio Resende tem um percurso longo de grandes realizações que atravessa dois séculos . Conheceu e conviveu com outros grandes vultos da cultura nacional e  mundial. É, em 1946, que faz a primeira exposição em Lisboa, cidade onde conhece Almada Negreiros.Na década de 1950, fixa-se no Porto,  e o tema da sua pintura passa a ser a gente do mar . Reparte, então,  a sua actividade entre  a arte e o ensino e vai apresentando a sua obra em exposições individuais por diversos países como Espanha, Bélgica, Noruega e Brasil. Por vários anos, foi o representante de Portugal em exposições colectivas nas Bienais de Veneza, Ohio, Londres, Paris e São Paulo, nesta última destacando-se em 1951, quando venceu o Prémio Especial da Bienal. Professor do ensino secundário, ganha em 1952 o Prémio da 7.ª Exposição Contemporânea dos Artistas do Norte, ano em que também executa um fresco da Escola Gomes Teixeira, Porto e faz investigação sobre desenho infantil.

Estudo para o painel de azulejos da Estação do Metropolitano de Sete Rios
Em 1959, volta a surpreender, conseguindo uma menção honrosa, e dez anos depois, vence o Prémio Artes Gráficas na Bienal de Artes de S. Paulo, com ilustrações do romance "Aparição" de Vergílio Ferreira.
Nos anos 1960, Resende interessou-se ainda por projectos de decoração e arquitectura, colaborando na decoração do Palácio da Justiça de Lisboa, para onde realizou seis painéis em grés. No Porto, criou dois painéis cerâmicos para o Hospital de São João e ainda o gigantesco painel de azulejos "Ribeira Negra" existente à saída do tabuleiro inferior da Ponte de D. Luís I. Os painéis acabariam mesmo por se tornarem num dos seus trabalhos mais apreciados.
Júlio Resende foi nomeado Membro da Academia Real das Ciências, Letras e Belas-Artes Belgas, em 1972, e em 1982 recebeu as insígnias de Comendador de Mérito Civil de Espanha atribuídas pelo Rei de Espanha.
Em Portugal foi distinguido com o Prémio AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) em 1985. Foi o responsável pela ilustração da obra de Fernando Namora “Retalhos da Vida de um Médico”. Em 1997 recebe, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique e realiza a decoração de azulejos da estação do Metropolitano de Lisboa de Sete Rios. Sobre  o  painel da estação de Sete Rios do Metropolitano de Lisboa diria :”
Afirmo que a pintura sempre se envolve no objectivo final de servir a causa dos espaços públicos, sentido esse que a enobrece. A sua função não se limita a “decoração” de um dado espaço mas a dotá-lo de um sentido próprio e inconfundível.A sua natureza de estação foi respeitada no confuso espaço interior no qual se dão os cruzamentos direccionais de linhas.O objectivo da estação de que sou autor, foi de tornar esse espaço animado como uma continuidade do clima exterior.Dada a proximidade do Jardim Zoológico, entendi natural que a vida animal e vegetal servissem de motivação no tratamento das paredes e dos pavimentos. Os estudos foram feitos à exaustão mas a execução foi de um grande improviso respeitando o princípio que nenhum sinal é repetível!…

Os azulejos foram realizados na Fábrica Viúva Lamego em Sintra, onde sempre encontrei o melhor ambiente de trabalho e colaboração.”(Júlio Resende, Outubro 2010, In “ O Lugar do Desenho”).

 Sobre Júlio Resende, Eugénio de Andrade escreveu " Como muitos outros artistas contemporâneos, Júlio Resende é um ser dividido entre a angústia e a esperança. O tempo que a sua obra reflecte não é como em Klee ou em Millares, um arquétipo: nem cristalino, nem pulverizado. Quem faz esta pintura, se não ignora a perpétua miséria da figura humana , acredita , contudo , que ainda é possível acordar de olhos transparentes num horizonte de juncos e  barcos." e conclui " Júlio Resende é um cantor da terra, desta realidade áspera e amarga que cada um de nós tem obrigação de trornar mais habitável. Só dela está empenhado em falar, e de maneira directa, quero eu dizer, sem outras perplexidades que as decorrentes de um processo que busca conciliar visão e expressão num acorde perfeito. É o visível que o pintor procura tornar mais visível. A respiração do mundo é tão -só o que nos quer comunicar, pois toda a maravilha da vida se cifra na consciencia de se estar vivo, Convenhamos que não é pequena a tarefa." ( Eugénio de Andrade, " Resende entre a Angústia  e a Esperança", in" Os Afluentes do Silêncio", Editorial Inova Limitada, Dezembro 1970)

O funeral do artista realiza-se, hoje, quinta-feira. Às 16h será celebrada a missa de corpo presente na Igreja Matriz de Valbom, seguindo o funeral às 16:45 horas para o Cemitério de Valbom .
O Lugar do Desenho foi criado pela Fundação Júlio Resende com vista a promover o trabalho do pintor, composto por cerca de duas mil obras. Saiba mais sobre o artista e a sua visão do mundo aqui