quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Alves Redol

Celebra-se este ano o centenário de Manuel da Fonseca e Alves Redol. Algumas comemorações  foram publicitadas, onde se destaca " A Mostra Bibliográfica no Ciclo histórico do Neo-realismo Português" promovida pela Biblioteca Nacional , conforme anunciámos neste espaço. Em 1972, Baptista-Bastos dedicou a Alves Redol um excelente texto no seu livro " Cidade Diária". É com a transcrição das palavras deste escritor que saudamos o autor de " Gaibéus", " Fanga", " Avieiros", " Olhos de Água", " Barranco dos Cegos" à "Historia da Sementinha", (etc.), enfim o obreiro de uma imensa e genial produção escrita que se estende por diversos géneros literários, onde evidencia  um profundo conhecimento do homem. Alves Redol, como intelectual comprometido do seu tempo, padecia de uma enorme inquietação social. Defendia e  sonhava uma sociedade mais fraterna e justa, pelo que também a  liberdade lhe foi roubada e sofreu a mágoa da injustiça, da incompreensão, do isolamento.
E porque  o texto de Baptista-Bastos retrata magistralmente esse homem singular , a sua leitura é de imediata prioridade.

UM AMIGO PARA SEMPRE

"Alves Redol figura na lista das minhas predilecções de homem-que-lê porque me ajudou a formar as mais justas das minhas ideias e porque acrescentou aos meus sonhos outros sonhos por ele próprio edificados. Há autores que cortejam a literatura para conseguirem prestígios grandes, adoçando razões pequenas, e há autores que são enamorados da literatura, servindo-a, para servirem outros homens. Creio que a amizade do espírito é fomentada e estimulada por esta segunda classe de escritores. As mágoas, as angústias, que muitas vezes julguei só minhas e grandes e insuportáveis, vi-as maiores e mais terríveis em livros que relatavam as evidências brutais da vida de outros homens, em livros que não se debruçavam sobre a vida, mas eram, sim, o documento da própria vida. O amor , por exemplo, o amor tornado mistério porque é o enigma de duas pessoas , vi-o finalmente desagrilhoado e decifrável na heroína da “ Fanga”, e voltei a localizá-lo, mais tarde , adulto, brando e perplexo no Pedro e na Jadwiga do “ Cavalo Espantado”. A amizade que nasce do sofrimento, entendia-a na “ Barca dos Sete lemes”, assim como compreendi o ódio e a possibilidade de construirmos o nosso próprio destino no “ Barranco dos Cegos ”.
Redol ensinou-me tudo isso e muito mais num diálogo discreto, que durou anos, desde que escreveu – “Do Alto Ribatejo e da Beira Baixa eles descem à lezíria pelas mondas e ceifas. Gaibéus lhes chamam “ – até ao prefácio a uma outra edição de “ Fanga”, onde fiz o reencontro com as meditações de um homem que se realizou escrevendo as realizações de outros homens.
“ A História é o reportório de tudo o que se passou na Terra. A Literatura, essa, é o testemunho de tudo o que se passou no coração dos homens”. As palavras são de Claude Roy e servem bem para explicar e definir a natureza essencial deste livro muito belo, que é uma admirável tentativa de crónica datada, o documento da existência de um homem, o Manuel Caixinha, igual a tantos homens que nunca tiveram cronista interessado nas suas vidas e assim: “…Escrevi este livro há vinte anos. Tem o ferrete do seu tempo. Também as obras se parecem mais com o seu tempo do que com os seus autores. Andava , então, o nazismo à solta pela Europa e pelo Mundo. Amigos meus, que nunca vi, morriam em campos de concentração ou em câmaras de gás.; outros escreviam as suas cartas de fuzilados e ainda outros lutavam para que a noite cedesse. “ Fanga “ partilha dessa luta contra as trevas. Representou uma esperança, viva num momento em que nos prometiam mil anos de servidão. Talvez por isso alguns o queimaram simbolicamente; talvez por isso também muitos homens o consideram o seu livro predilecto. Manuel Caixinha sou eu. Manuel Caixinha também morava na Golegã, ao mesmo tempo que escrevia poemas nos vários países da Resistência europeia – em toda a parte onde os homens resistiram, ele não faltou ao encontro marcado com a liberdade…”
A grandeza de Redol principiou onde terminaram as cobiças de outros escritores: numa renovação constante da visão do mundo, numa evolução natural das mais exactas perspectivas, numa luta permanente para não perder a pista do homem português, que é a grande verdade de toda a sua obra, e a realidade para que viveu e sofreu e acreditou.
Neste livro do reencontro relembrei as falas de há anos do meu primo Zé Deodato, cavador que tem biografia feita nas terras do amanho da Estremadura. Disse-me que mandara a filha à escola para que ela lesse livros, sobretudo um que começava assim: “ Para vocês , fangueiros dos campos da Golegã, escrevi este livro. Que algum dia o saibam ler e rectificar , pois o romance da vossa vida só vocês o saberão escrever.
Baptista –Bastos , in “ Cidade Diária”, Editorial Futura, Lisboa, 1972

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