quarta-feira, 27 de julho de 2011

Quando o Brasil entrou na Faculdade de Letras de Lisboa

Maria Lúcia Lepecki morreu no Domingo. Foi minha professora de Literatura Brasileira quando iniciava a sua carreira académica em Portugal. No final da década de sessenta e princípio da década de setenta, a Faculdade de Letras de Lisboa, apesar de ter sido palco de manifestações e greves contra o regime ditador vigente, respirava ainda um ambiente fortemente tradicional e muito formalizado nas relações e saudações entre alunos e professores. A revolução efectiva chegou com a jovem professora Maria Lúcia Lepecki ao dirigir-se, num rasgado sorriso, a uma plateia estudantil cortesmente alinhada para a primeira aula prática de Literatura Brasileira através de uma simples saudação: "Bom dia pessoal."
Era a voz de um Brasil distante que nos entrava pelos ouvidos e de tão inusitada e inesperada surpreendia-nos totalmente, espantando a soturnidade reinante. A vacuidade impessoal do "Bom dia" era, então, a fórmula banalizada e generalizada para qualquer início de aula, pelo que jamais qualquer professor nos tinha assim cumprimentado. Do imprevisto ficou-nos a curiosidade aguçada de escutar aquela voz cadenciada num português musicado, menos agreste e quase melódico, a desvendar-nos os caminhos literários do Brasil. Foi um imenso prazer e uma intensa descoberta. A disciplina de Literatura Brasileira regida por Vitorino Nemésio com a assistência de Lúcia Lepecki atingiu a excelência.
À Professora, à ensaísta, à investigadora, à crítica literária e à mulher defensora e promotora de grandes causas , apresento a minha homenagem no dia em que se realiza o seu funeral.
Foram publicados vários artigos noticiosos sobre esta grande professora que recordam alguns aspectos da sua vida.Transcrevemos o seguinte:
"Morreu Maria Lúcia Lepecki, a escritora que tinha uma “delícia” pela língua portuguesa.
A escritora, crítica literária e ensaísta brasileira Maria Lúcia Lepecki morreu este Domingo aos 71 anos em Lisboa, vítima de cancro.Maria Lúcia Lepecki nasceu em Axará, no estado de Minas Gerais, no Brasil, mas estava radicada há várias décadas em Portugal, sendo uma profunda conhecedora da literatura portuguesa, que leccionou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde foi professora catedrática.
Brasileira de nascimento e portuguesa por casamento, era autora de obras como “O romance português contemporâneo na busca da história e da historicidade, “Uma questão de ouvido: ensaios de retórica e interpretação literária” ou “Meridianos do texto”.
Camilo Castelo Branco foi o centro da sua tese de doutoramento, em 1967, que iniciou anos antes na Universidade de Sorbonne, em Paris, e que viria a terminar na Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil. Fora no Brasil que terminara a licenciatura em Filologia Românica.
Começou a aprender latim, inglês e francês com a mãe, a partir dos nove anos. Numa autobiografia publicada em Dezembro de 2006 no Jornal de Letras, a que deu o nome de “Historinha de vida”, lembra ter crescido, no Brasil, numa casa “cheia de livros e de conversas interessantes”. “Era pouco dada a brincadeiras, de modo que a mamãe teve o bom-senso de me ensinar a ler aos cinco anos. Foi um sossego, a partir dali não me faltou diversão. Lia obsessivamente, do Monteiro Lobato ao Viriato Correia ou o Francisco Marins, e mais o que escarafunchava nas estantes do pai. Dickens, Scott, Dumas e até um livro de capa azul, ‘O Primo Bazílio’. Devorei-o, às escondidas, aos dez anos. Não entendi da missa a metade. Confidenciei o mal-feito ao meu pai, ia eu na casa dos quarenta. E ele: ‘Não te fez mal nenhum, filha’. Teve razão”.
No mesmo texto, recorda que lhe perguntavam com frequência se tinha tido dificuldade em adaptar-se a Portugal. “Na verdade, não”, escreve, para depois acrescentar: “Talvez por causa do meu pai, que, muito conhecedor de História e de Literatura portuguesas, trazia sempre à baila, a propósito ou talvez não, coisas tão diferentes como a “Crónica de Dom João I”, o Eça ou o Marquês de Pombal. Isto para não falar dos três exemplares de “Os Lusíadas”, esparramados estrategicamente pela casa: um no escritório, outro na mesinha da saleta e o terceiro na mesa de cabeceira do pai. Portugal integrava o imaginário da nossa casa. Isto seguramente me facilitou a vida”.
Colaborava em várias revistas e jornais portugueses e estrangeiros, sobretudo na área da literatura, como a Colóquio/Letras e o suplemento literário do Estado de São Paulo.
Em 2004, recebeu o prémio de ensaio literário da Associação Portuguesa de Escritores.
Em 2008, por ocasião do encontro literário Correntes d´Escritas, na Póvoa de Varzim, manifestou-se publicamente contra o novo acordo ortográfico. “"Eu sempre achei que o acordo ortográfico não é preciso: um brasileiro lê perfeitamente a ortografia portuguesa e um português lê perfeitamente a ortografia brasileira”, sustentou na altura.
O escritor Baptista-Bastos, que à Lusa confirmou a morte da ensaísta, referiu-se a Maria Lúcia Lepecki como uma “ensaísta notabilíssima e uma defensora da cultura portuguesa”.
Helena Roseta – que a conheceu no final dos anos 1990 quando organizava o espólio de Natália Correia e de quem Lepecki foi apoiante na candidatura à Câmara de Lisboa, em 2007 – recorda-a pelo “sentido físico muito forte” na forma como comunicava.
A graça que tinha “em pôr as coisas”, diz, traduzia “a delícia pela língua portuguesa” que a acompanhavam na soltura e no riso que lhe vinham de uma “grande vontade de viver”. Força que, recorda Roseta, deixava notar até numa certa sobranceria perante a doença. “Lembro-me, há uns anos, de me ter dito que tinha vencido um ‘cancrito’”.in Jornal Público

1 comentário:

  1. A boa lembrança fica é pena ficarmos mais pobres com estas perdas

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