quinta-feira, 30 de junho de 2011

Para uma sociedade melhor : Desmercadorizar

"Desmercadorizar significa impedir que a economia de mercado se transforme numa sociedade de mercado.
Desmercadorizar é um imperativo incontornável na busca de uma sociedade melhor. Sobrepostas às crises financeira, económica e social que acompanham o capitalismo desde o seu início, as crises ecológica, energética e alimentar vieram conferir um grau de convicção maior a algumas constatações que até agora não tinham merecido a atenção do cidadão comum. Eis algumas dessas constatações.
Primeiro, conceber o desenvolvimento como crescimento infinito assente na apropriação intensa da natureza é uma conceção que nos conduz ao desastre. A natureza está dar múltiplos sinais de que os seus ciclos de regeneração vital têm vindo a ser violados muito para além do que é sustentável. A natureza aguenta bem o uso por parte dos humanos mas não o abuso. O planeta não é inesgotável. O estilo de vida nos países desenvolvidos é energívoro e submete as energias não renováveis a uma pressão insustentável.
Segundo, a redução do bemestar ao bem-estar material, baseado no consumo de bens disponíveis no mercado, deixa de lado muitas dimensões da vida (a espiritualidade, o cuidado, a solidariedade, os valores éticos) essenciais ao florescimento humano. Tornam-se necessários outros indicadores de bemestar.
Soa hoje menos absurda ou exótica a iniciativa de um pequeno país budista entalado nos Himalaias, Butão, que, em 1972, decidiu criar um índice de Felicidade Interna Bruta (por analogia com Produto Interno Bruto) para medir o desenvolvimento humano com base nos valores da sua cultura.
Terceiro, como qualquer outro fenómeno histórico, se o capitalismo teve um início, certamente terá um fim. Aliás, a crise ecológica está a mudar os termos dos desafios que enfrentamos: se o problema não for o de saber se o capitalismo sobreviverá, é certamente o de saber se sobreviveremos ao capitalismo.
Quarto, o capitalismo, por mais dominante, não conseguiu nunca erradicar totalmente outras lógicas de relações económicas que não passam nem pela acumulação infinita de riqueza nem pelo lucro a qualquer preço; essas lógicas (algumas existiam antes do capitalismo e sobreviveram, outras surgiram com o capitalismo e para lhe resistir) contêm um repertório de inovação social e económica que pode ser precioso num contexto em que se aprofundam as crises social, ecológica, alimentar e energética.
Refira-se, a título de exemplo, o conceito de "viver bem", Sumak Kawsay em quéchua, que os indígenas do Equador lograram transformar em imperativo constitucional, ao mesmo que atribuíram à natureza (Pachamama, a terra mãe) a titularidade de direitos próprios dela e não dos humanos.
Desmercadorizar significa impedir que a economia de mercado estenda o seu âmbito a tal ponto que transforme a sociedade no seu todo numa sociedade de mercado, numa sociedade onde tudo se compra e tudo se vende, inclusive os valores éticos e as opções políticas.(...)"
Boaventura de Sousa Santos in “Portugal -Ensaio contra a autoflagelação”

O livro “Portugal -Ensaio contra a autoflagelação”, com 154 páginas, divide-se em sete capítulos. Desde o primeiro, com "breves precisões conceituais sobre as crises e suas soluções", até ao último, com o título "Outro mundo é possível" (palavra de ordem do Forum Social Mundial, de que Boaventura de Sousa Santos é um principais dirigentes ou teorizadores), o autor analisa a situação actual, seus problemas e desafios -e faz propostas. O trecho que publicamos é o final desse último capítulo, sobre o que considera ser, criando um novo termo, o terceiro "imperativo" -depois de "democratizar" e "descolonizar" -para "sair da crise com dignidade e esperança". Boaventura carateriza a autoflagelação como "a má consciência da passividade", considerando não ser "fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta".In JL
 Leia o artigo completo: Boaventura Sousa Santos: Para uma sociedade melhor: desmercadorizar

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Tu

Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não mais teria sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê tecto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.

Luísa Dacosta, in " A Maresia e o Sargaço dos Dias ", Edições Asa

terça-feira, 28 de junho de 2011

Prémios Literários

Gonçalo M. Tavares venceu ontem o Grande Prémio de Romance e Novela, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores e pelo Ministério da Cultura.
"Apesar do livro ter recebido boas críticas desde que foi publicado, a decisão do júri não parece ter sido fácil - o que não será de estranhar quando estão 99 títulos a concurso, de 99 escritores, vindas de 43 editoras. José Correia Tavares, Cristina Robalo Cordeiro, Isabel Cristina Rodrigues, José Manuel de Vasconcelos, Violante Magalhães e Fernando Dacosta precisaram de três reuniões até chegarem a um consenso, "por maioria", pela história de Gonçalo M. Tavares. "A Cidade do Homem", de Amadeu Lopes Sabino também lutava pelo prémio, mas no final recebeu apenas os votos de Isabel Cristina Rodrigues e de Manuel de Vasconcelos. Tavares levou a melhor, ganhou 15 mil euros e mais uns quantos louvores ao seu trabalho. "Surpreendente, completamente inovador, arrojado, o que o distingue para sempre", disse o escritor Fernando Dacosta à Agência Lusa. Durante a cerimónia de apresentação, no CCB, Vasco Graça Moura disse também que "''Uma Viagem à Índia'' é um livro que vai marcar com certeza, não apenas a história da literatura portuguesa mas provavelmente a cultura europeia." De alguma forma, Fernando Dacosta concorda, garantindo que pode "tornar-se numa referência na literatura de língua portuguesa" e que o livro tem carácter "de universalização". Verdade ou não, o certo é que a história já foi publicada em Angola, Moçambique e Brasil. Mas há mais: estão em curso quase 160 traduções para serem editadas em 35 países.
Gonçalo M. Tavares não é estreante nesta experiência de arrecadar prémios. (Talvez por isso tenha estado incontactável durante a tarde de ontem.) O escritor português ganhou vários prémios nacionais e internacionais com os seus livros. O repetente "Uma Viagem à Índia" foi vencedor do Prémio Melhor Narrativa Ficcional 2010 da Sociedade Portuguesa de Autores e do Prémio Especial de Imprensa Melhor Livro 2010 Ler/Booktailors. Mas, e sem desmerecer qualquer uma destas distinções, vencer o Grande Prémio Romance e Novela pela APE/MC deve ter um gosto especial. Não é todos os dias que se recebe a mesma distinção que António Lobo Antunes, Agustina Bessa-Luís ou Vergílio Ferreira já receberam noutros anos.
«É uma grande honra receber este prémio, muito prestigiado, por um livro de um género estranho», afirmou Gonçalo M. Tavares em declarações à Lusa.
O escritor considera que “Uma Viagem à Índia” é «uma ficção que é pouco classificável, que normalmente está presente nos meus livros. Agrada-me muito esta ideia de um texto que cada leitor coloca e recebe de diferentes maneiras».
Uma obra que, nas palavras do escritor, «conta a história de Bloom e da sua viagem ao Oriente para encontrar um sábio indiano que o encaminhe espiritualmente».in Jornal I
 e Lusa
Les prix 2011 de l'Académie française
"S’il faudra attendre octobre pour découvrir le lauréat du Grand Prix du Roman 2011, les Immortels ont d’ores et déjà délivré leurs 70 autres distinctions pour l’année.
Dans sa séance du jeudi 23 juin 2011, l’Académie française a récompensé pas moins de 70 écrivains, poètes, philosophes, artistes, chercheurs ou éditeurs… La mieux dotée de toutes les récompenses, le Grand Prix de Littérature Henri Gal (prix de l’Institut de France doté de 40000 euros), a été décernée à Yasmina Kadhra, romancier algérien, auteur des très remarquées Hirondelles de Kaboul en 2002 et déjà récompensé, en 2008, par le prix France Télévision pour Ce que le jour doit à la nuit. Parmi les autres grands prix 2011, le prix de la littérature (15000 euros) a été remis au psychanalyste et écrivain Jean-Bertrand Pontalis pour l'ensemble de son oeuvre, l'écrivain marocain Abdellatif Laabi pour la francophonie (22500 euros), l’auteur de La Descente de l'Escaut, Franck Venaille, pour la poésie (3800 euros) et au sinologue François Jullien pour la philosophie (3750 euros). Notons encore la remise du Prix de la Nouvelle à Thomas Clerc (auteur de L'homme qui tua Roland Barthes (éd. Gallimard) ; celui de la Biographie littéraire à Jean-Luc Barré, auteur de François Mauriac, Biographie intime (éd.Fayard), et celui de l'Essai à Sébastien Allard et Marie-Claude Chaudonneret auteurs de Le Suicide de Gros (éd. Gourcuff Gradenigo)."  24/06/2011, Fil des lettres,Le Magazine Littéraire

23 juin 2011 : Élection au fauteuil de Claude Lévi-Strauss
"L’Académie française, dans sa séance du jeudi 23 juin 2011, a procédé à l’élection au fauteuil de M. Lévi-Strauss (29).
M. Amin Maalouf a obtenu 17 voix au premier tour contre 3 voix à M. Yves Michaud.
Bulletins blancs : 2
Bulletins blancs marqués d’une croix : 2
M. Amin Maalouf a été élu au premier tour de scrutin avec 17 voix sur 24 votants.
«Mon élection à l'Académie française est un symbole très important pour le Liban, un moment que je vis intensément et qui est reçu dans mon pays d'origine avec la même intensité», a déclaré le nouvel académicien à l'AFP. Né dans une famille chrétienne du Liban en 1949, l’écrivain, passionné par l'histoire et la rencontre des cultures, a reçu en 1993 le prix Goncourt pour son roman Le Rocher de Tanios (Grasset), ainsi que le prix Prince des Asturies en 2010 pour avoir célébré la culture méditerranéenne «comme un espace symbolique de coexistence et de tolérance». D’abord journaliste au An-Nahar, principal quotidien de Beyrouth, Amin Maalouf a quitté son pays empêtré dans la guerre civile en 1976 pour s’installer à Paris. Entré en écriture par un essai historique, Les Croisades vues par les Arabes (Lattès, 1983), il se jette ensuite «à corps perdu» dans la fiction avec Léon l'Africain (Lattès, 1986) ou encore Le Périple de Baldassare, publié en 2000, puis revient aux essais avec Origines en 2004 et Le Dérèglement du monde, en 2009." Le Magazine Littéraire

segunda-feira, 27 de junho de 2011

“Purgatório”, o último romance de Tomás Eloy Martínez e outros

A Porto Editora publica, no dia 30 de Junho, “Purgatório”, o último romance de Tomás Eloy Martínez.
“Purgatório “é uma odisseia sobre um casal de cartógrafos que sofre, em 1976, as consequências da ditadura militar argentina e que só volta a reencontrar-se passado 30 anos, em New Jersey.
O exílio, o medo da morte e a esperança de encontrar o que se perdeu são peças que movem este maravilhoso romance, por muitos considerado o melhor e mais pessoal livro do escritor e jornalista argentino, falecido em Janeiro de 2010.
SINOPSE
No Inverno de 1976, em plena ditadura, Simón Cardoso é detido pelos militares argentinos e nunca mais volta a aparecer. Trinta anos depois, porém, a sua mulher, Emilia Dupuy, fica paralisada ao ouvir a sua voz num restaurante dos arredores de New Jersey. O mundo, que se desmoronara com a tragédia, recupera então a luz. Será possível reaver o tempo perdido?
A partir deste inusitado encontro, Tomás Eloy Martínez enlaça a ansiedade de um amor perdido e recuperado com a reconstrução magistral da irrealidade criada pelo exílio – um exílio que ele próprio conheceu.
Aliando uma linguagem sóbria e uma história tão estranha quanto intensamente real, Purgatório ficará por ventura como a melhor obra de um autor já reconhecido como um clássico pela crítica internacional.
Primeiras páginas: aqui

O escritor e jornalista Tomás Eloy Martínez nasceu en Tucumán, ao norte da Argentina, em Julho de 1934 e faleceu em Janeiro de 2010. Aquando da sua morte , Carmen Caffarel, directora do Instituto Cervantes expressou que Eloy Martínez foi um “dos autores que converteram  o jornalismo em obra literária” e acrescentou : “ a sua obra narrativa, ensaística e jornalística, assim como o seu compromisso cívico, permanecerão como uma das referências fundamentais da cultura em língua espanhola do último meio século”.
O escritor mexicano Carlos Fuentes, deplorou la morte de seu colega argentino Tomás Eloy Martínez declarando que “merecia  muitos reconhecimentos” entre eles o Prémio Cervantes de Literatura.
 Enquanto jovem, ganhou diversos prémios pelos seus poemas e contos. Escreveu vários guiões para cinema e um ensaio sobre cinema (Estructuras del cine argentino, 1961) e publicou, depois do livro de contos Lugar común la muerte (1979), os romances Sagrado (1969), La novela de Perón (1985), La mano del amo (1991), Santa Evita (1995), Las memorias del general (1996), La pasión según Trelew (1997), El vuelo de la reina (2002) e El cantor de tango (2004), além do ensaio El sueño argentino (1999).
Com a publicação de Santa Evita, Tomás Eloy Martínez converteu-se em um dos escritores argentinos de maior projecção internacional. Aquela obra, traduzida para 25 idiomas e publicada em mais de 30 países, é considerada um dos mais sólidos e deslumbrantes romances da literatura latino-americana, cuja importância foi destacada por autores como Carlos Fuentes, Augusto Roa Bastos e Gabriel García Márquez, que escreveu: “Aqui está, finalmente, o romance que eu queria ler”.Por sua vez, quer The New York Times, quer a London Review of Books consideraram o conjunto da obra de Tomás Eloy Martínez como “o fenómeno literário mais importante da América Latina depois de "Cien años de soledad”.
Director do Programa de Estudos Latino-americanos da Universidade de Rutgers (New Jersey), Tomás Eloy Martínez foi  colaborador permanente dos diários The New York Times, El País, de Madrid, e La Nación, de Buenos Aires. * O romance “O Voo da Rainha” ganhou em 2002 o Prémio Alfaguara de Novela, entre 433 manuscritos, 310 dos quais procedentes da América Latina. Desde então, além de publicado em Espanha e na América Latina, foi traduzido e editado nos seguintes países: Alemanha, Brasil, China, França, Grécia, Hungria, Israel, Itália, Portugal, Roménia, Rússia e Sérvia. Bibliografia ASA
 Livros que vão estar nas  livrarias, em Julho:

"O Que Se Leva Desta Vida " de Alice Vieira
«O que se leva desta vida? Bom, cada um sabe de si, mas nós sabemos o que o leitor pode levar deste livro! Dependendo dos casos e das histórias levará um sorriso nos lábios, uma lágrima no canto do olho, um grito de esperança, uma sonora gargalhada, um olhar cúmplice, um reviver d outros tempos ou um sentir do toque do futuro…
O Que se Leva desta Vida são pequenas estórias escritas com o humor e a sensibilidade a que Alice Vieira sempre nos habituou.»



"A Opereta dos Vadios" de Francisco Moita Flores
“Uma sátira política sobre um país falido.” É assim que é apresentado o novo romance de Francisco Moita Flores, A Opereta dos Vadios, a sair a 11 de Julho. É uma das apostas da Casa das Letras para Julho, onde também constam O Que Se Leva Desta Vida, de Alice Vieira, e uma biografia de Isaac Newton assinada por James Gleick, estes dois com lançamento agendado para o dia 18.
A Opereta dos Vadios – Francisco Moita Flores
«De repente, o País ficou de sobrolho carregado. Zangado. A bancarrota revolveu os intestinos da política e entregou ao Povo um sarilho cheio de fome. A democracia, com a barriga cheia de teias de aranha, desatou a vomitar vermes. De testa franzida. Fazedores de milagres. Gente que perdeu a virtude do riso. Portugal transformou-se num protectorado alemão e Zé Francisco, velho anarquista, exilado em Paris, com os seus amigos de sempre, vindos de todos os lados da política, decidiram criar um novo partido político (PUN) dispostos a ganhar as próximas eleições.»


"Isaac Newton" de James Gleick
«A biografia de Isaac Newton ou a história do principal arquitecto do mundo moderno. James Gleick expõe, neste livro, a vida solitária de Newton, fornecendo pistas valorosas para a melhor compreensão dos corpos, da inércia e do movimento – conceitos tão enraizados no século XX que poderíamos mesmo dizer que todos somos Newtonianos.
Livro finalista do Pulitzer.»

A ternura de um abraço

Este vídeo registou cinco milhões de visionamentos na internet, em apenas dois dias. A ternura de um abraço é tão repousante quanto ele. Vê-lo, entre animais, recorda-nos  quão necessários são os gestos básicos para que a nossa existência seja mais harmoniosa.

domingo, 26 de junho de 2011

Ao Domingo há Música

"Feeling Good" ou "Feelin' Good" é a canção proposta para este Domingo."Oh freedom is mine/And I know how I feel" são palavras melódicas que dançam no coração.
"Feeling Good"  é  uma famosa canção que tem sido gravada por diversos e grandes cantores , mas foi a voz profunda e inconfundível de Nina Simone que lhe deu a maior  notoriedade. Gravou-a pela primeira vez, em  1965, no Album "I Put A Spell On You" e foi posteriormente, em 1993,  integrada na banda sonora do filme "Point Of No Return", onde interpretava a maioria das canções.
"Feeling Good" foi composta, em 1964, por Anthony Newley e Leslie Bricusse para o musical "The Roar Of The Greasepaint—The Smell Of The Crowd".



Feeling Good

Birds flying high you know how I feel
Sun in the sky you know how I feel
Reeds driftin on by you know how I feel

(refrain:)
Its a new dawn
Its a new day
Its a new life
For me
And Im feeling good

Fish in the sea you know how I feel
River running free you know how I feel
Blossom in the tree you know how I feel

(refrain)

Dragonfly out in the sun you know what I mean, dont you know
Butterflies all havin fun you know what I mean
Sleep in peace when day is done
Thats what I mean

And this old world is a new world
And a bold world
For me

Stars when you shine you know how I feel
Scent of the pine you know how I feel
Oh freedom is mine
And I know how I feel


Anthony Newley e Leslie Bricusse

sábado, 25 de junho de 2011

Milagre

"O milagre não é uma suspensão das leis da natureza, mas o seu cumprimento.
Os grandes supermercados e shoppings tornaram-se os nossos templos, com a liturgia do consumo e do desperdício. E afastam, por estratégias de construção e segurança, a mão do pedinte, o estorvo do outro. E eu faço parte, mesmo a contrapelo, desse coro concentrado no umbigo e na ambição. Para nós caberia a pergunta do Criador feita a Adão, com a perda do paraíso: "onde estás?" Onde estamos que não vemos ou atrofiamos os olhos e a epiderme? Paul Ricoeur observa muito bem quando afirma que a essa pergunta endereçada a Adão, "apenas Abraão pode responder: Eis-me aqui." O mesmo autor, se bem me lembro, disse que o amor protege a justiça do cálculo interessado do Do ut des, dar para que me seja devolvido.
Nesta prontidão somos poucos. E quando respondemos, guardamos uma reserva de tudo o que temos e somos. "Não há maior milagre do que repartir o pão." Todo repartir do pão é consagração, efectua a presença do senhor da messe. Nesse claro instante o homem reconhece o seu irmão, cidadão de Jerusalém, filho de Abraão, abrindo-lhe as portas do coração e da morada. "Um só é o testamento." Não há ruptura entre os textos. O novo é tão antigo como o primeiro e o antigo sempre será novíssimo. Todos os livros em torno ao sagrado, na busca da beleza e verdade, na conciliação entre vida e caminho, se agregam a esse testamento. Eles também falam em milagres, sinais a serem interpretados. O milagre não é uma suspensão das leis da natureza, mas o seu cumprimento. A verdade não nega a lei, mas dá-lhe o endereço. O devido cumprimento da lei instaura a justiça: dar a cada um o que é seu. Ir além, o amor ao próximo realiza. "Um só é o preceito: ama o próximo como a ti mesmo." Então é preciso um amor a si mesmo desprovido de egoísmo, de falsos ídolos, de barganhas e subterfúgios. Um amor que não nos tolha o crescimento como pessoa de valores. Se te vendes por nada, assim amarás. (...) O amor, segundo Platão, faz com que tudo viva em conexão..
" O homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem". Kafka, o profeta tardio, descreveu tão bem os labirintos irracionais da lógica da burocracia! Tanto no “Castelo”, no esforço infrutífero de chegar ao agrimensor, como no “Processo”, ao desabafo do personagem, como corolário do livro: " a lógica não pode impedir um homem que quer viver." Queremos um Deus adequado à razão ou acomodado a nossas vantagens. Esvaziamos as palavras sagradas a nosso bel-prazer. Aquele que devemos amar no próximo desarticula todos os esquemas.”
 Maria Carpi in "Abraão e a encarnação do verbo", Editora Age, Porto Alegre,2009

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Pessoa Humana, realidade completa

"A pessoa é um fim em si mesmo e não o final de si mesma, uma realidade ontológica digna ,um fim em si e nunca um meio.
O ser humano é pessoa integral: corpo com dimensão material e dimensão espiritual, que ocupa tempo e espaço limitado. Pode afirmar-se que, simultaneamente, a pessoa tem um corpo e é um corpo; sobretudo é um ser corporal. É um corpo vivido, em que “a relação de si passa necessariamente pela relação no outro”. Como o corpo é relacional, já que faz parte da constituição do homem e este tem consciência de si perante si e perante os outros, é-lhe conferida a conotação do homem como ser possuidor de inteligência, memória e vontade. “ Pela inteligência , a pessoa está aberta à universalidade do ser; pela vontade, está aberta à universalidade do bem”.
Para Aristóteles, “ o corpo não é um simples mecanismo mas um ente dotado de sentido, que tem o seu fim e o seu centro de gravidade em si mesmo e que só se compreende a partir de si próprio e da sua função.”É também uma entidade “entre” a consciência e o mundo, marcado pelas coisas que passaram no mundo da consciência; “ É pelo meu corpo que compreendo o outro, assim como é pelo meu corpo que percebo as coisas.” Existe uma totalidade relacional com os outros, com o mundo, com os vários orgãos, todos importantes, que constituem esse corpo.
Para Descartes ( séc.XVII ),o corpo é como que um conjunto do eu corporal com a alma ,localizando-se esta numa parte do corpo que corresponde ao lugar do pensamento e da liberdade. Na era contemporânea , atribuiu-se ao ser humano a noção de unidade , como visão holística, opondo-se à anterior e reducionista divisão em corpo e alma.
O corpo é o elemento intrínseco à existência do ser humano, é a identidade da pessoa e corresponde à sua parte visível. É também expressão de uma realidade vivida, da sua experiência que passa no mundo e pelo mundo, sendo a única para cada ser humano; a sua personalidade e a sua individualidade passam através do corpo. No entanto, o corpo é habitado por uma consciência, sendo esta que o caracteriza como pessoa; é finito, cresce e desenvolve-se de acordo com a experiência que cada um faz de si mesmo, vivido num mundo concreto, envolvido num conjunto de encontros com os outros eus e que é capaz de se referir a si mesmo e de se abrir com os outros. É com ele e através dele que se constrói a sua história ao longo do tempo, que se forma a identificação pessoal desse corpo; é uma dimensão natural do eu e, por ele , o ser humano é mortal. Mesmo depois da morte, o corpo representa a experiência, uma vida que foi vivida, a relação como mundo a que correspondeu esse mesmo corpo. Como ser de relação que é, o homem é pessoa.
Uma das definições mais comuns de pessoa, é a de Boécio, que a denomina como “ substância individual de natureza racional”, isto é, o indivíduo concreto, como ser único e individual.
A palavra pessoa deriva do grego prosôpon, que significa máscara, o que desempenha um papel, que constrói uma personagem. Cada pessoa constrói o seu caminho percorrendo-o, correspondendo a um processo dinâmico de construção da personalidade pelo agir e através da sua relação com o outro. É um ser que comunica sempre com o outro, até mesmo através de uma linguagem a que podemos chamar de não-falante porque o corpo, com a sua expressão comunica sempre , reflectindo para o exterior o seu estado interior.
O homem é um ser natural como todos os outros seres vivos mas, como homem tende para um fim feliz ( para a perfeição), tem uma característica muito própria – é um ser pensante e racional, porque tem uma consciência. O homem tem consciência de si, sabe como actuar para atingir o seu fim e é também essa consciência que o torna distinto de outros seres. A racionalidade e a liberdade são as características mais especificas do ser humano; sabe objectivar e tirar conclusões, enquanto que os outros animais não, necessitando contudo do “outro” para a sua realização e para a sua sobrevivência. Assim, só ele pode conhecer, compreender, prever e modificar o mundo que o rodeia . “ O homem está no mundo , é no mundo que ele se conhece” e, “ devido à sua natureza espiritual e relacional, tem capacidade de conhecer o bem e o mal: de apreciar a superioridade do bem verdadeiro sobre esse bem aparente e enganador que é o mal”
O corpo é o” lugar” e o “meio” do encontro da consciência e do mundo à sua volta. No entanto, o corpo próprio não é apenas cognitivo mas também afectivo; por isso o mundo, isto é, as coisas e os outros que estão perante nós ou abertos a cada um pela sua própria consciência , é sempre um mundo co-determinado pela afectividade e que, enquanto ser, enquanto corpo sujeito, tem necessidades e exige atenção por parte do outro.
Todas as pessoas devem ser tratadas com o respeito e a dignidade moral que todo o ser humano merece, pelo mero facto de ser pessoa – a raiz da dignidade humana advém da realidade de ser considerado como pessoa e não como instrumento." Isabel Renaud

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os Oceanos em perigo


Oceanos enfrentam declínio "chocante".Novo relatório revela situação sem precedentes na história da humanidade.



Relatório recomenda o fim da pesca intensiva.
"As pressões que se exercem no oceano, como o aumento de temperatura ou a sobre-pesca, fizeram-no entrar num declínio “chocante”, marcado por sintomas que antecedem as extinções em massa.
O alerta foi feito num relatório realizado por investigadores do Programa Internacional sobre o Estado dos Oceanos (IPSO, na sigla em inglês), que indica que os ecossistemas marinhos enfrentam perigos ainda maiores do que os estimados até agora pelos cientistas e que correm o risco de entrar numa fase de extinção de espécies sem precedentes na história da humanidade.Neste trabalho, o painel de especialistas advertiu que factores como a pesca intensiva, a poluição e as mudanças climáticas estão a agir de uma forma conjunta que não havia sido antecipada.
Segundo Alex Rogers, director científico do IPSO e professor da Universidade de Oxford, "as conclusões são chocantes. Há mudanças que estão a acontecer mais rápido do que o expectável e de forma que não se esperava que fossem acontecer por centenas de anos", como o degelo no Árctico, na Groenlândia e na Antárctida, o aumento do nível dos oceanos e libertação de metano no mar.
Efeitos em cadeia provocados pelos poluentes
Neste estudo verificou-se, por exemplo, que alguns poluentes permanecem nos oceanos por estarem presos a pequenas partículas de plástico que lá foram depositadas. A existência destes componentes, para além de prejudicar a alimentação dos peixes que os consomem, é responsável pela proliferação de algas tóxicas.
O estudo descreveu também como a acidificação do oceano, o aquecimento global e a poluição estão a agir de forma conjunta para aumentar as ameaças aos recifes de corais, tanto que 75 por cento dos corais mundiais correm o risco de sofrer um severo declínio.
O relatório observou ainda que episódios anteriores de extinção em massa revelaram tendências que estão a ocorrer actualmente, como distúrbios no ciclo de carbono, acidificação e baixa concentração de oxigénio na água.


Alex Rogers, director científico do IPSO continua:
"Ainda contamos com boa parte da biodiversidade mundial, mas o ritmo actual da extinção é muito mais alto [do que no passado] e o que enfrentamos é, certamente, um episódio de extinção global significativa", afirmou Alex Rogers, explicando ainda que os níveis de CO2 que são absorvidos pelos oceanos já são bem mais altos do que os registados durante a grande extinção de espécies marinhas que ocorreu há 55 milhões de anos.
Este relatório, que será formalmente apresentado esta semana em Nova Iorque, recomenda ainda que se acabe, urgentemente, com a pesca intensiva, dando atenção ao alto mar, onde não há regulamentação eficaz, que se mapeie e reduza a entrada de poluentes como plásticos, fertilizantes agrícolas e dejectos humanos e que se minimize as emissões de gases de efeito estufa." In "CiênciaHoje" em 21/06/2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Reflexos


Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

                        o tempo de viver;
                        e a gente em social desencontrado;
                        e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
                        fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.
Ana Luísa Amaral ,In “Anos 90 e Agora”, Quasi Edições

terça-feira, 21 de junho de 2011

Canto a la libertad

Jose Antonio Labordeta, poeta , músico, resistente e político espanhol em "Canto a la libertad! ", um hino à LIBERDADE  que se converteu num hino emblemático que atravessou  fronteiras .



Canto a la libertad

Habrá un día en que todos
al levantar la vista
veremos una tierra
que ponga LIBERTAD

Hermano, aquí mi mano
será tuya en mi frente
y tu gesto de siempre
caerá sin levantar
huracanes de miedo
ante la LIBERTAD

Haremos el camino
en un mismo trazado
uniendo nuestros hombros
para así levantar
a aquellos que cayeron
gritando LIBERTAD

Habrá un día en que todos
al levantar la vista
veremos una tierra
que ponga LIBERTAD

Sonarán las campanas
desde los campanarios
y los campos desiertos
volverán a granar
unas espigas altas
dispuestas para el pan

Para un pan que en los siglos
nunca fue repartido
entre todos aquellos
que hicieron lo posible
por empujar la historia
hacia la LIBERTAD.

Habrá un día en que todos
al levantar la vista
veremos una tierra
que ponga LIBERTAD

También será posible
que esa hermosa mañana
ni tú, ni yo, ni el otro
la lleguemos a ver,
pero habrá que empujarla
para que pueda ser.
Que sea como un viento
que arranque los matojos
surgiendo la verdad
y limpie los caminos
de siglos de destrozos
contra la LIBERTAD.

Habrá un día en que todos
al levantar la vista
veremos una tierra
que ponga LIBERTAD.

Jose Antonio Labordeta

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sobre a Poesia VII

Nesta 7ª edição de "Sobre a Poesia",publicamos um excerto de um excelente artigo do poeta Gastão Cruz sobre Eduardo Lourenço.

TESTEMUNHO
EDUARDO LOURENÇO: A HABITAÇÃO DO TEXTO
Por Gastão Cruz
“(…)A linguagem criada por Eduardo Lourenço para a aproximação aos poetas de quem fala, ou para a reflexão mais geral acerca da natureza da poesia, tem fortes afinidades com o modo como, no período moderno, alguns dos nossos principais poetas descreveram o seu ofício e o pensaram. Numa das primeiras páginas de Pessoa Revisitado, podemos ler o seguinte: “O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a Linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou afirmando-se através dessa dúvida.” Algum parentesco encontramos entre esta forma de falar do poeta e da poesia e, por exemplo, o texto, intitulado “Poética”, em que Eugénio de Andrade afirma: “O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação”. Também Sophia, numa das suas “Artes Poéticas”, diz: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. [...] Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.” Penso que, no Portugal do século XX, pouca gente escreveu sobre poesia como os próprios poetas. Melhor dizendo, poucos, além deles, falaram da poesia vivendo-a, isto é, habitando-a, para recuperar uma palavra, e uma ideia, de Eduardo Lourenço, que surge numa das entrevistas inéditas agora publicadas na revista Relâmpago. Referindo-se ao já aqui citado prefácio, de 1961, à Antologia de Eugénio de Andrade, posteriormente incluído em Tempo e Poesia, fala Eduardo Lourenço de “uma proposição da crítica do poético que não seja da ordem do explicativo, nem da perífrase, mas da osmose, quer dizer, uma viagem no interior do texto não para lhe acrescentar qualquer coisa mas para o habitar.” Penso que este conceito de crítica se afasta completamente do que é usual encontrarmos nos críticos de poesia, o que não quer dizer que não existam caminhos diversos para a abordagem do poema. Porém, este é absolutamente sedutor. E perigoso, na exacta medida do seu fascínio. É necessário, na verdade, alguém ter o génio literário de Eduardo Lourenço para se aventurar na via da criação de uma linguagem que, através da “osmose”, como ele nos diz, irá habitar o texto pré-existente, triunfando nessa forma de acesso ao seu cerne significativo profundo. É certamente neste sentido que se tem dito que o estilo ensaístico de Eduardo Lourenço, quando fala de poesia, é o de um poeta. E é também compreensível que ele recuse essa classificação. Num sentido técnico, digamos, o autor de Tempo e Poesia não é, de facto, um poeta. Todavia, a sua crítica é, muitas vezes, um texto poético. (…)“O poeta na cidade (hoje)”, agora publicados, ou, já em 1951, esse texto fundador da sua visão que é "Esfinge ou a poesia", de Eduardo Lourenço saído no primeiro número de Árvore,195. Essa visão da poesia harmonizava-se perfeitamente com a exaltada consciência de modernidade que ecoava nas páginas da revista, e particularmente nos poemas, nos ensaios e nas recensões críticas assinados por António Ramos Rosa. A concepção de uma poesia absolutamente livre, na sua intensidade criadora, conduzia à defesa de uma linguagem que se queria autónoma em relação à produção lógica do discurso normalizado. A Esfinge, como alegoria do fenómeno poético, representava o que se tornara essencial ao discurso da poesia moderna: a ambiguidade. Cito: “Espírito da Terra capaz de romper através da vida obscura da inércia animal para oferecer uma face de deus ao apelo universal da luz, a Esfinge ao mesmo tempo a realização plástica mais concreta do acto original do homem: a poesia. Chamaram-lhe misteriosa e enigmática. E ela não é senão ambígua.” E depois: “No espírito do seu criador, a Esfinge é uma resposta. A poesia é expressão de origens. Solicitado pela noite animal e a plenitude solar, um poeta talhou na rocha uma forma visível da sua condição. Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar nada. É aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam. A obra vale pela densidade de silêncio que nos impõe. Por isso os poetas que imaginam dizer dizer tudo são tão vãos como as estátuas gesticulantes. Agora é fácil compreender como pôde nascer o mistério da esfinge. O enigma da poesia.” O paradoxal silêncio da poesia, a que vários poetas se referem, de Eugénio de Andrade a Ruy Belo, não é senão a estranheza que a poesia sempre manifesta perante a realidade e se transforma na própria substância do seu dizer: “É uma coisa estranha este verão.” – assim começa o poema “Ácidos e óxidos” de Ruy Belo. Diante do mundo, o poeta sente que a poesia é o próprio mundo e nada mais, que a linguagem poética mais não é que uma especial atenção às imagens que dele nos chegam e que essa atenção basta para o recriar. Disse-o Sophia, como já vimos, ao anunciar-nos que a poesia lhe pede “que viva atenta como uma antena”. Disse-o igualmente Carlos de Oliveira em versos que muitas vezes tenho citado: “levantar a torre do meu canto/é recriar o mundo pedra a pedra”. E disse-o ainda, é claro, Fernando Pessoa, nesse pequeno supremo poema sobre a natureza da poesia: “Ao longe, ao luar,/No rio uma vela,/Serena a passar,/Que é que me revela?//Não sei, mas meu ser/Tornou-se-me estranho”. A estranheza causada por uma simples e serena vela que “ao longe, ao luar” passa no rio é, na verdade, a essência mais absoluta da poesia, o “autêntico real absoluto” do aforismo de Novalis que antigamente encontrávamos como lema da colecção Poesia, da Ática, e Eduardo Lourenço, na entrevista a que já me referi, volta a convocar, dizendo que o toma à letra. Aquele “meu ser tornou-se-me estranho” é a essência da situação do poeta frente ao mundo, ou, como diria António Ramos Rosa, em “diálogo com o universo”. Ou ainda, como lemos em Vitorino Nemésio, “Nomeei as coisas e fiquei contente:/Prendi a frase ao texto do universo.” Essa estranheza, que deriva de uma maior atenção ao mundo, não é senão a consciência que advém de uma outra (e afinal a mesma) atenção (e note-se como “atenção” volta a ser aqui a palavra-chave): a atenção à vida que Fernando Pessoa afirma ter posto nos seus três principais heterónimos: “Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.” Para exprimir tal estranheza, de que a modernidade tomou certamente mais aguda consciência, e que já está, evidentemente, em Cesário – por isso ele é um poeta moderno – teria de ser inventada uma nova linguagem, ou melhor, novas linguagens, que marcam impressivamente toda a história (já podemos falar assim) da poesia portuguesa do século XX. Profundamente sensível a este vasto processo criador, Eduardo Lourenço sempre tem estado em consonância com ele, descobrindo a linguagem crítica que poderia, e pôde, “habitar”, como ele disse, esta poesia. O seu trabalho tem sido, importa sublinhá-lo mais uma vez, fundamental para o nosso conhecimento, não apenas dos poetas que estudou, mas da poesia em si, e da modernidade poética, em particular. Nenhuma obra crítica nos é tão essencial à compreensão do que mais importa no poderoso mundo poético que é o nosso – sobretudo o dos modernos, é claro, mas também o de outros que igualmente fascinaram Eduardo Lourenço: Camões, Antero. Porque é sempre de poesia que se trata. Termino, com estas palavras retiradas do ensaio “O poeta na cidade (hoje)”: “A poesia, quer dizer a longa trama dos poemas onde a humanidade a si mesma se construiu , a única arca de Noé que sobrevive a todos os dilúvios – não é a nossa maneira de nos evadirmos do que somos mas de nos apercebermos, embora em figura, como dizia São Paulo, de quem verdadeiramente somos. É uma barca de palavras, mas tem o poder de transfigurar o que é opaco e não humano naquela realidade que tem um sol no meio e chamamos vida, a nossa vida, a nossa única vida.”
Gastão Cruz, In TESTEMUNHO , EDUARDO LOURENÇO: A HABITAÇÃO DO TEXTO

domingo, 19 de junho de 2011

Há Música ao Domingo

Neste  Domingo luminoso, de sol e calor,  cantar com Ray Charles " Somewhere over the rainbow", acreditando que "Em algum lugar além do arco-iris, os Céus são azuis, e todos os sonhos que  ousa sonhar, se tornam verdade" talvez seja um bom desafio.

Somewhere over the rainbow
Someday I’ll wish upon a star
And wake up with a rainbow there

Somewhere over the rainbow
Way up high,
There's a land that I heard of
Once in a lullaby.
Somewhere over the rainbow
Skies are blue,
And the dreams that you dare to dream
Really do come true.

Someday I'll wish upon a star
And wake up where the clouds are far
Behind me (are far behind me)
Where troubles melt like lemon drops
Way up above the chimney tops
That's where you'll find me.

I know somewhere over the rainbow
The bluebirds fly
They fly over the rainbow
Why then, why can’t I?

Someday I’ll wish upon a star
And wake up where the clouds are far
Behind me
Someday I’ll wish upon a star
And wake up where the clouds are far
Behind me
Where troubles melt like lemon drops
Way up above the chimney tops
That’s where you’ll find me

Somewhere over the rainbow
Bluebirds fly.
Birds fly over the rainbow.
Why then, oh why can't I?

If happy little bluebirds fly
Beyond the rainbow
Why, oh why can't I?

Música de Harold Arlen,  Letra de E.Y. Harburg

sábado, 18 de junho de 2011

Protopoema de Saramago

José Saramago morreu a 18 de Junho de 2010. Tinha 87 anos e o Mundo tem-no homenageado frequentemente . Hoje, Lisboa e Portugal  vão  saudá-lo com inúmeras e variadas cerimónias.


PROTOPOEMA
Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem.
Continua a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumurosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo
José Saramago,in "Provavelmente Alegria", Caminho, 1987, 3.ª edição; 1.ª edição, Livros Horizonte, 1970

sexta-feira, 17 de junho de 2011

A Porta



Alguma coisa fora de mim
está escondida em mim
como um coração exterior

Às vezes canta mesmo a meu lado
com a minha voz
como se tivesse eu cantado

Talvez estas lágrimas
não me pertençam nem este momento
nem este sentimento de este sentimento

Que rosto real
me olha e se vê?
Que porta física
tenho que passar?

Manuel António Pina in "Poesia Reunida", Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p 112.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O desespero está na rua

Imagens de desespero passam pelo mundo vindas de tantos e diferentes países. São jovens acossados pela invisibilidade de um Futuro, são trabalhadores despojados da única fonte de sobrevivência, são cidadãos perseguidos e explorados por governos déspotas e opressores, são desalojados à procura de uma pátria , são multidões de desencantados pela ganância e egoísmo que imperam neste mundo crísico e vácuo.
Cerca de 2 mil manifestantes cercaram nesta quarta-feira o Parlamento catalão em Barcelona, num protesto contra o plano regional de austeridade.O Presidente da Catalunha, Artur Mas, estava entre os Deputados regionais que só conseguiram chegar ao Parlamento num helicóptero da polícia, já que os manifestantes barricavam a entrada .
Alguns Deputados foram atingidos por jactos de tinta enquanto passavam pelos cordões da polícia e outros que tentavam entrar no Parlamento foram empurrados.
A sessão parlamentar iniciou-se com considerável atraso e com a ausência de mais de metade dos Deputados.
Os manifestantes protestam contra o plano regional de austeridade que prevê cortes na Saúde e na Educação.
A maior parte dos manifestantes de Barcelona faz parte de um movimento de jovens designado por "Indignados" , que já fez vários protestos por toda a Espanha contra os planos de austeridade do governo espanhol. Muitos deles iniciam ,hoje, uma manifestação em Valência.(Notícia baseada nos Media)




Confrontos em Atenas, Grécia, em mais um dia de greve geral.Os gregos protestam também contra a adopção de um pacote adicional de medidas de austeridade, que vai começar  a ser analisado no Parlamento e do qual depende a continuação da ajuda da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar a bancarrota do país. Centenas de manifestantes, pertencentes ao movimento de protesto popular dos 'indignados', reuniram-se, ontem,na praça Syntagma à frente do Parlamento. Acampados na praça há três semanas, os indignados gregos prevêem formar uma cadeia humana e cercar o Parlamento. A polícia colocou uma barreira de dezenas de veículos estacionados na rua, à frente da entrada do Parlamento, para permitir o acesso aos deputados e impedir a multidão de se aproximar.(Notícia baseada nos Media)

A palavra em Carlos Tê

Carlos Tê no Centro Cultural de Belém , a 18 de Junho, às 21h00.
Aquele que será provavelmente o mais célebre letrista em Portugal apresenta, no Grande Auditório do CCB, um programa que terá o formato de um desfile de cumplicidades, autorais e artísticas, estabelecidas durante um percurso de trinta anos que deu origem a muitas canções. Para interpretar vários temas do seu repertório mais conhecido, bem como alguns inéditos, Carlos Tê convidou os Clã, Cristina Branco e Rui Veloso.
“[…]este espectáculo aflora aquilo que tem sido a tónica principal do meu trabalho: a relação da palavra com a voz que se manifesta na calha da melodia. Falo da canção popular, esse fenómeno que atingiu o seu apogeu na segunda metade do século XX. […] Nesses tempos, a canção parecia deter um poder catalítico, era sopro que enfunava a alma com palavras tolas alavancadas por melodias viciantes. Nunca fiz planos para integrar o seu clube de artesãos, nem sei bem como fui lá parar, mas acho que se deveu à dedicação ao culto. O salto de utente para artesão é que foi brusco, mirabolante, próprio de tempos mirabolantes em que tudo parecia possível, até fazer canções sem ter habilitação para isso. Mais tarde, percebi que era essa a grande força da canção pop: não ter habilitação, apenas enraizamento, paixão, perceber que a sua função ia de vazadouro de angústias amorosas a funda de atirar pedras a injustiças seculares.”

Rui Veloso em  "Paixão" (anel de Rubi), uma canção intemporal que foi um grande sucesso. Carlos Tê e Rui  Veloso formaram uma longa e cúmplice parceria que produziu grandes canções.


Carlos Tê - Paixão (anel de Rubi ... Rivoli)


Tu eras aquela, que eu mais queria.
Para me dar algum conforto e companhia.
Era só contigo que eu, sonhava andar.
Para todo o lado e até pensava, talvez casar.


Ai o que eu passei, só por te amar
A saliva que eu gastei, para te mudar.
Mas esse teu mundo era mais forte do que eu.
E nem com a força da música ele se moveu.


Mesmo sabendo que não gostavas,
Empenhei o meu anel de rubi.
Para te levar ao concerto
Que havia no Rivoli.


E era só a ti, quem eu mais queria,
Ao meu lado no concerto nesse dia.
Juntos no escuro de mão dada a ouvir.
Aquela música maluca, sempre a subir.


Mas tu não ficaste, nem meia hora.
Não fizeste um esforço para gostar e foste embora.
Contigo aprendi uma grande lição.
Não se ama alguém que não houve a mesma canção.


Mesmo sabendo que não gostavas,
Empenhei o meu anel de rubi.
Para te levar ao concerto,
Que havia no Rivoli.


Foi nesse dia, que percebi,
Nada mais por nós havia a fazer.
A minha paixão por ti, era um lume,
Que não tinha mais lenha por onde arder.


Mesmo sabendo que não gostavas,
Empenhei o meu anel de rubi.
Para te levar ao concerto,
Que havia no Rivoli.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A finitude da vida


Inicia-se , hoje, o V Congresso Nacional do Idoso - Geriatria 2011 que  irá decorrer até  16 de Junho de 2011, no Centro de Congressos de Lisboa.
Entre as razões que são enumeradas para a sua realização estão as seguintes:" Apesar do declínio fisiológico determinado pela idade ser inevitável, e o processo de envelhecimento imutável, os profissionais de saúde podem e devem minorar a expressão da doença no Idoso, através da prevenção, do aconselhamento e do tratamento adequados. E, tendo em conta o aumento da esperança média de vida verificado nos últimos 30 anos, torna-se indispensável adequar a formação médica e os padrões sociais a esta nova realidade."
Numa reportagem emitida por um canal televisivo sobre gente que sobrevive, apareceu o registo de uma idosa , modista reformada, vivendo numa casa, quase em ruínas, na nossa bela capital, Lisboa, e tendo como rendimento uma pensão de miséria. Apesar de tanta adversidade, a idosa , movendo-se já com  dificuldade, residia sozinha, enfrentando os desafios diários naquele que era o seu lar , considerando que a vida era apenas uma passagem. A firmeza que a sustinha vinha-lhe, certamente, da tal  força interior que se cultiva ao longo da vida e que se afirma  também com o lugar de pertença, o chão da casa, o tecto das próprias raízes, nem que ele esteja a cair. 
Criar condições para que se dignifique uma existência, passa pelo auxílio na manutenção/recuperação das casas degradadas daqueles que nada têm para o fazer.Arrancá-los , no ocaso da vida, do  lugar de pertença, retirando-os das suas próprias casas , será condená-los a perder a própria identidade. A finitude da vida merece um olhar diferente daquele que, nestes dias de ira, leva a condenar os mais velhos a um ostracismo indesejado e a colocá-los, geralmente à revelia, em Lares da dita 3ª idade, impondo-lhes um  espólio de toda uma vida .  
Todas as políticas relativas a este grupo etário devem partir do respeito pela individualidade de cada um. Zelar pelos idosos é propiciar que  possam  preservar,  com dignidade, uma identidade subjacente a um percurso existencial que tem referenciais próprios que não podem ser apagados.
Pela sua  actualidade, transcreve-se um pequeno excerto de um romance que desenvolve esta temática:
 “(…)Quando acordara naquele dia não enxergara de imediato onde estava. A sua vida nos últimos anos obrigara-a a mudar constantemente de lugar, pelo que invariavelmente quando acordava tinha dificuldade em reconhecer o quarto.
Assim, quando respirou fundo e abriu bem os olhos e os sentidos todos começaram a funcionar, pareceu-lhe ouvir a seu lado um ruído descompassado, pesado e quase ofegante. Sentou-se na cama e viu-se num quarto sombrio, com uma claridade tenuemente difusa que se espalhava, mostrando-lhe mais duas camas onde jaziam também dois vultos que não foi capaz de identificar.
Então, recordou repentinamente a noite anterior. Tinham-na levado para o Lugar. Ali estava ela no meio de estranhos, não imaginando sequer quem eram eles, mas compartilhando já o quarto.
Apesar de tudo em qualquer das casas por onde andara, até na que deixara de lhe pertencer, tinha tido sempre um quarto só para ela. Os filhos tinham preservado essa sua necessidade mínima de independência. E era lá que se renovava e se refortalecia para os combates que foram sucessivamente travados num plano de  aparente desigualdade. Ela fora sempre vencedora, pois estava íntegra. Nunca fora tão forte a sua energia interior. Conseguira resistir aos desmandos dos filhos e aceitara de face lavada a entrada no Lugar.
E assim começava o primeiro dia da mudança mais radical e inesperada da sua vida. Sozinha no meio de tanta gente.
Como a história da vida, por vezes, trai. Tenta-se construí-la de uma maneira e ela desenrola-se de outra. Quando os filhos eram crianças, tinha sonhado criá-los a todos em casa, confrontando firmemente Mário Alberto que, de acordo com a época, teimava em interná-los em colégios para usufruírem de uma rígida educação. Sempre considerou que o ambiente familiar era o melhor suporte para um crescimento saudável, regulador de qualquer educação.
Todos estudaram em bons colégios particulares, mas em regime de externato. Assustava-a a ideia de os ver isolados entre estranhos, repartindo o quarto na noite grande e dominadora. Só a filha mais velha fora internada na fase da adolescência, aos catorze anos, quando completou o antigo 5º Ano do Ensino Liceal para seguir um curso de línguas estrangeiras, num colégio afamado que ficava distante.
Tornou-se uma jovem rebelde e fez um casamento desastroso com o tal inglês desvairado que a deixou sem meios e com três filhos. Foi progressivamente convertendo-se numa mulher amargurada e azeda. Atribuiu sempre ao internamento e, por tal, à consequente separação do ambiente familiar este evoluir da sua personalidade.
Afinal a história escrevia-se agora contra ela. Eram os filhos que  a tinham internado. E a noite grande e dominadora tinha sido passada num quarto partilhado a três.
Levantou-se e, lá ao fundo, descobriu uma porta. Era a casa de banho. Era grande, interior, mas bem iluminada por uma profusa luz artificial. Estava limpa e dispunha de uma grande banheira e de uma zona separada para o duche. Abriu as torneiras e a água começou a jorrar aquecida e transparente.
-“Que alívio”. Poderia tomar um bom banho e depois começar a reconhecer o Lugar.
Acabado o banho, retornou para o quarto e os vultos continuavam inertes nas camas impossibilitando o seu reconhecimento. As respirações prosseguiam ofegantes com intervalos irregulares, ora roncando sinistramente, ora sibilando titubeantemente. Seriam estas as suas companheiras dos tempos vindouros?
Tinha de sair rapidamente do quarto e libertar-se deste ambiente desolador. As forças necessitavam de ser retemperadas num processo preventivo de defesa.
- Será que poderei sobreviver neste Lugar? - pensou pela primeira vez em surdina e até com medo de se ouvir. “ 
Maria José Vieira de Sousa, in "O Lugar, memórias de um romance”, Junho de  2008