quinta-feira, 19 de maio de 2011

O tempo em poesia

O continuum presente no texto poético
O tempo para a poesia  é um mero detalhe alheio ao fazer artístico. O poeta, por sua vez, esvai-se em seu próprio tempo: implacavelmente, todos temos de desaparecer, ninguém foge a essa realidade, daí o carpe diem  horaciano, cujo reflexo é o próprio modo de pensar a literatura no mundo clássico: viver o presente, o momento; por isso, Homero (...) não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor. (AUERBACH, in "Mímese: a representação da realidade na literatura ocidental" ,2004, p. 3).
Para Husserl, o presente é um sempre estender-se, cujo resultado seria o passado e o futuro e, ao absorver sucessivamente o passado e o futuro nesse acto contínuo, quase infinito (apesar de não sê-lo, pois essas duas pontas do presente – passado e futuro – jamais se encontrarão), esses estarão cada vez mais distantes entre si. (Cf. DELEUZE,"Lógica do sentido", 2003, pp. 63-65) A obra, porém, permanece, repete-se a cada nova leitura – a despeito de seu autor – e nos conduz, por meio da leitura, a seu contínuo presente:
“Os amores de Safo, e a própria Safo, são irrepetíveis e pertencem à história; mas seu poema está vivo, é um fragmento temporal que, graças ao ritmo, pode reencarnar-se indefinidamente. Faço mal em chamá-lo fragmento, pois é um mundo completo em si mesmo, tempo único, arquétipo, que já não é passado nem futuro, mas presente. E esta virtude de ser para sempre presente, por obra da qual o poeta escapa à sucessão e à história, liga-o inexoravelmente à história. Se é presente, só existe neste agora e aqui de sua presença entre os homens. Para ser presente o poema necessita fazer-se presente entre os homens, encarnar na história. Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho do tempo e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico, no princípio do princípio.” (PAZ, "Signos em rotação", 2005,p. 53)
Transcendendo o histórico, o poema mostra-nos que sua história é paralela à nossa, constituindo-se um todo não só temporal como espacial. Vemos a alternância entre uma contínua protensão e retenção, ou seja, um presente contínuo cujos influxos saltam aos olhos durante a leitura, levando-nos a interagir com o texto, tornando-nos participes do mesmo por meio de nossas próprias impressões, de nossas próprias percepções. Estas são, segundo Bergson, representadas como uma visão fotográfica das coisas, que seria
tomada por meio dos órgãos perceptivos e que se metaboliza em nossos cérebros.
“Mas como não ver que a fotografia, se fotografia existe, já foi obtida, já foi tirada, no próprio interior das coisas e de todos os pontos do espaço? “(BERGSON,"Matéria e memória", 1999, p. 36).
A nossa consciência escolherá, a partir de vários pontos instados num poema, um único para que, a partir desse, possa tentar compreender o todo que se nos apresenta diante de nós e que possa despertar, em nossa memória, as correlações necessárias para que possamos adentrar no objecto textual. Essa relação diferencia-se de um correlato perceptivo, quando temos um objecto real diante de nós, pelo facto de somente podermos, neste caso, estar adiante, nunca inseridos, como na leitura. No entanto, podemos nos questionar: em qual dos pontos do texto poético isso poderia advir, se o poema é um todo visual (imagens suscitadas pelo texto), sonoro (tipografia: recitação mental) e espiritual (significados intuitivos, conceitos emotivos? (PAZ, "Signos em rotação",2005, p. 26)
 Por quais fragmentos desse todo –um mundo à parte, diríamos – que caracteriza o poema, poderíamos começar nossa leitura? A partir de um determinado aspecto histórico, ou de uma visão sincrónica ou diacrónica?
Retomemos, agora, as palavras de Paz que nos servirão de ponto de partida: Para ser presente o poema necessita fazer-se presente entre os homens, encarnar na história. Isso é particularmente importante, quando pensamos que cada momento histórico possui suas particularidades, seus avanços e retrocessos em relação a determinados aspectos, sejam sociais, culturais ou económicos.
Dessa forma, a leitura que fazemos de um momento e de um espaço específicos pode sempre ser diversa daquela de que foi originada, ou seja, de seu contexto. Podemos exemplificar isso a partir de nosso avanço no campo social, quando surge o que se convencionou chamar de politicamente correcto. Hoje  considera-se  inaceitável, por exemplo, as rinhas de galo ou as touradas; mas, que dizer das rinhas de homens no Império Romano, quando não só as autoridades como também o povo se inebriavam  com o sangue derramado dos gladiadores?
Por isso que:
[: Entender a cultura de uma época só é possível se encontrarmos a lei vital e pulsante que tudo permeia, mostrando-a como princípio estrutural que tudo forma. (...) Não podemos partir de uma ideia abstracta; a cultura deve ser entendida como acção viva, como expressão viva do corpo popular; a vida é sempre a vida de pessoas. (...) Certamente, a burguesia do século XIX, centrada na propriedade, não é igual à burguesia do século XVIII, centrada na Bildung; mas essas são apenas definições resumidas, que não se originam, realmente, na esfera económica ou social, mas na esfera espiritual (...).](KINDERMANN,in  "Handbuch der Kulturgeschichte.s/d, p. 1" - Tradução livre)
As máquinas, no advento da modernidade, levavam o temor a alguns, enquanto outros se maravilhavam com elas; os futuristas tomavam-nas como mote de seu fazer artístico; no entanto, elas passaram a ser, numa época próxima à nossa, pesadelo para aqueles que, em virtude de seu desenvolvimento e da robótica, temiam por seus empregos. O avião, por exemplo, parecia ser o grande impulso à união dos povos: tornou-se a grande arma de destruição entre os mesmos e, com seu ronco, levava o caos e a morte em tempos de guerra (ou não, como se viu com o WTC em Nova York).
Como se não bastasse o facto de ser fonte e manter seu próprio tempo, o poema passa a ser espelho do mundo real em que está inserido, e, como tal,reflecte-o por meio da inversão: ele é, mas para sê-lo mais, tem de invertê-lo para que a visualização seja maior, seja completa e mais nítida, ou seja, deve-se manter distância, para que se possa abarcar o mundo reflectido em profundidade. Assim, para enxergar de forma clara a realidade e o presente em que se está inserido, é necessário estar distante, para que se possa discernir melhor e mais claro, caso contrário o que se verá são emanações de nossa subjectividade latente.”
António Jackson, “ O logos e a especificidade da linguagem poética”, in Revista Eutomia

1 comentário:

  1. poema é saber
    poema é entender,
    quem sabe não fala
    e quem não sabe se rala.

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