sábado, 21 de maio de 2011

O Marinheiro e seu barco

    Para Daniela
Lembro-me de um tempo imenso,
de um menino de espumas e areia
do mar que tive em minha infância.
Depois a vida cresceu dentro de mim,
as tardes me acostumaram com os barcos partindo
e no meu pequeno peito nasceu um sonho de marinheiro.

Recordo que em mim tudo era barco
e que a existência chamava-me de todos os portos do mundo.
Recordo meus salgados olhos tatuados com invisíveis rotas
navegando errantes sobre o horizonte.

Sim, há coisas tristes na vida
como um sonho de criança
quando morre em nosso coração de homem.
E hoje,
quando vejo minha pátria naufragada
e meu povo reconstruir com sangue
seu barco despedaçado,
sinto que em mim renasce transformado
o mesmo sonho antigo;
então meu coração se banha com as águas amargas desses anos
e penso naquele transparente canto de pérolas e algas
que herdei de ondas remotas
em tudo que em mim ficou de verde e de imenso;
e sonho novamente com um visionário caminho para a vida,
com seus barcos de pão e de peixes
com gaivotas jovens
e sua brancura abrindo-se com o amanhecer.

E penso o meu tempo                                                            
com seus caminhos longos e difíceis
e o sinto com a esperança das águas nas nascentes
e seu deslumbramento da desembocadura.
E mais além
penso em um oceano com novas longitudes,
em uma bússola  de estrelas
guiando meu povo a uma aurora boreal.
E penso nesses povos antigos
que partiram um dia em busca de uma terra longínqua,
em busca de novos campos para suas sementes
e de um berço de sol para seus filhos.

Ah irmãos!
quantos mares desconhecidos nos esperam!
Quantos caminhos até chegar à nossa sonhada Canaã!

Sim... há coisas belas na vida...
como o homem com seu barco e seu destino
como a alma extraordinária dos camaradas
a ternura escondida em seus punhos
e seus gestos de vida e de amor.
E penso nesse porto ainda distante
no trigo maduro
na doçura das laranjas na próxima estação.
Penso em uma iluminada manhã
quando voltar a pisar o chão da pátria
e  abraçar minha filha bem amada.

Manoel de Andrade, in " Poemas para a Liberdade", Lima, Dezembro de 1969, Ed. Escrituras

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