quinta-feira, 28 de abril de 2011

O elogio do vazio


Daniel Serrão, Médico Patologista , Professor e  autor de várias obras, homem culto e dinâmico ,  que tem representado Portugal em diversos organismos internacionais e que se tem orientado por uma profunda dedicação à  Ética médica e à Bioética, proferiu, em 1988, num Encontro de Psicanálise e Cultura, uma notável Conferência.  Pela riqueza e pela actualidade  que revestem as suas palavras , publicamos um excerto dessa  Conferência.

Elogio de um vazio virtual e virtuoso
(Conferência)
Tenho à minha frente uma folha de papel, branca, vazia.
Será insuportável o vazio desta folha?
Será que não conseguirei escrever nela nada que interesse aos participantes neste encontro de Psicanálise e Cultura?(...)Que grande desafio, minhas Senhoras e Senhores, o que fiz a mim próprio ao aceitar intervir e ao assumir, contra a corrente, não a angústia do vazio mas o elogio de um vazio que pode ser apenas virtual e poderá tornar-se virtuoso.
Olho a folha de papel, branca e vazia, e vejo nela o espaço onde vou projectar-me, onde vou colocar, com ordem e método se possível, o que tenho para vos comunicar.
Sem nenhuma angústia. Com tranquilidade e optimismo.
Começo com uma citação de Bernardo Soares e do seu "Livro do Desassossego" que é, todo ele, uma análise subtil mas corrosiva da percepção individual do vazio.
"Sim, é o poente..." "Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira de dizer, o capricho livre de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim - lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla esquecida.
Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de todas as emoções, amareleceu-me esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de mim.
Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra cousa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. É todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da Lua emerge numa brancura eléctrica parada, recortado a longínquo e a insensível.
É toda a falta de um Deus Verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito - porque és infinito não se pode fugir de ti”. Fim de citação.
A inteligência analítica de Pessoa - uma inteligência judaica que vai até ao mais fundo de si própria, sejam quais forem as consequências, numa volúpia insaciável de descobrir a verdade - desenha, neste texto, os contornos nítidos do vazio possível numa existência humana.
É porque o existir é descoberto na "consciência externa de mim" - le soi-même comme un autre, de Paul Ricoeur - que o vazio não tem que ver nem com a vida nem com a morte; é outra coisa que até brilha, que pode ser ou não um diamante, mas está no fundo de uma cova à qual não se pode descer.  Mas, não poderá? - interrogo eu.
A apóstrofe final do texto de Bernardo Soares é a caracterização deste vazio, do vazio tal como Pessoa o descobre em si - Cárcere infinito e acrescenta, depois de um travessão, porque és infinito não se pode fugir de ti.
Tenho neste texto o essencial para defender a minha tese: o vazio é virtual e pode, em certas condições, ser virtuoso.
Primeiro argumento - a Natureza tem horror ao vazio; ou: não há vazio na Natureza.
Esta Natureza, que grafei com N maiúsculo, é todo o mundo natural físico e químico; não há nele vazio porque o espaço é gerado pela expansão da matéria no tempo; e um espaço exterior à matéria é impensável pela inteligência humana. A matéria pode ser sólida, líquida ou gasosa mas porque é ela que define o espaço, não há vazio; o vazio seria um espaço sem matéria o que não é concebível no interior da categoria lógica que, bem ou mal, conforma o nosso pensamento.
No mundo real, inorgânico ou biológico, não há vazio, não há espaço sem matéria. Quando os histopatologistas descrevem, nos tecidos, espaços sem matéria, espaços vazios, como o espaço de Disse entre as células hepáticas, apenas estão a descrever artefactos da técnica histológica aplicada a tecidos mortos pela fixação.
No mundo natural não há vazio, nem real nem virtual.
Se não há vazio na natureza - e é certo que não há, nem mesmo os buracos negros no universo cósmico são espaços vazios e eram os últimos que resistiam - se a natureza é toda ela compacta então é fora desta opacidade da natureza que poderemos encontrar o tal vazio anunciado no programa deste encontro de psicanálise e cultura e dado, pelos organizadores, como insuportável.
Onde descobrirei esse vazio?(...)Não está de certo na Psicanálise. Ciência recente, ela está bem cheia de cultores especializados, de pacientes confiantes, de teorias, de doutrinas, de métodos de intervenção, de criatividade por vezes quase esotérica de tão profundamente interpretativa ou explicativa.  Cheia também de alguns fracassos e desilusões.
Também não estará na Cultura porque esta enche-se todos os dias com os produtos da actividade criativa da inteligência humana, racional ou emocional. E quando os velhos, como eu, dizem: os jovens actuais vivem num vazio cultural, apenas estamos a afirmar que estão cheios de uma cultura diferente da nossa. Não leram Eça de Queiroz, mas devoram Jeffrey Archer; não ouvem Bach mas compraram milhões de discos do Good-Bye Rose; e por aí fora.
Se não é o vazio na Natureza, nem na Psicanálise, nem na Cultura, será o vazio no homem que é, afinal, tudo isto, é natureza, é espírito e é cultura?
Vou assumir que é o vazio no Homem; o tal animal aflito, no dizer de Gedeão, que vai de mais infinito a menos infinito.  Então haverá algum espaço, entre as duas coordenadas do Infinito, que possa apresentar-se, ao homem e no homem como um espaço vazio? Há, mas é um vazio virtual.
Para expor este segundo argumento - o vazio no homem é virtual - vou ter de arranjar um conceito de homem e movimentar-me dentro dele.
Chegado a este ponto, confrontado com semelhante necessidade metodológica - propor uma concepção de homem - que é uma tarefa ciclópica e, se calhar, para mim, inacessível, olho a folha branca e sinto-me vazio.
Se conseguir escrever alguma coisa que vos interesse ou apenas vos irrite concluirei que este vazio é, claramente, virtual; veremos no final se acabou por ser virtuoso.
(…) Quando a inteligência de alguns gregos, meio século antes da nossa era, se defrontou com o vazio no entendimento do homem e do seu lugar no mundo, iniciou uma reflexão profunda e tão virtuosa que, ainda hoje, é dela que se alimentam todos os filósofos; essa reflexão criou conceitos novos e as palavras que passaram a simbolizá-los e a exprimi-los pelo seu conteúdo significante - Caos, Cosmos, Physis, Logos, Ethos, Pathos, Psyché e tantos outros. Esta reflexão grega, incontornável como se diria hoje, abriu o caminho para a reflexão racional dos homens que se continuou até ao momento presente e se continuará no futuro. Excelsamente virtuosa, direi, a forma como foi superado este vazio.
Outro exemplo é o do vazio gerado pela descoberta consciente da morte pessoal.
A morte - muito mais do que o amor que não é vazio, é plenitude - foi, é e continuará a ser a maior fonte de criações culturais e artísticas todas orientadas, expressa ou simbolicamente, para a superação do vazio gerado pela vivência auto-consciente da morte individual. E isto acontece em todas as sociedades humanas, sejam quais forem as linguagens culturais disponíveis - das pirâmides egípcias, à Pietá de Miguel Ângelo ou às desconstruções de Marc Chagal.
Onde quero chegar, porque é tempo de terminar, é que a percepção auto-consciente do vazio seja ele afectivo, emocional, intelectual ou total, pode ser, tem sido o ponto de arranque para um trabalho de superação que pode não encher o vazio individual - Dostoiewslay teve a virtude de criar uma obra genial mas viveu no vazio até ao fim - mas dá, a este vazio, um carácter virtuoso para o próprio e para os outros homens.
Melhor ser vazio, assim, do que estar cheio de si próprio, engordado por uma balofa auto--suficiência e pela empáfia orgulhosa de tudo saber e tudo controlar.
Melhor sofrer este vazio do que não levar "angústia para o jantar”, e poder dormir o sono tranquilo dos antropóides sem história.
Melhor viver perigosamente o seu vazio pessoal do que gastar, inutilmente, a vida no conformismo cinzento de todo o mundo para ser, afinal, ninguém.
O vazio pode ser virtuoso e criativo.
A vida cheia, supostamente cheia, pode estar oca e ser inútil.
Para terminar como comecei com uma referência hebraica, chamo em meu auxílio Job, o paradigma do homem esvaziado de tudo mas que soube virtualizar e superar esse vazio - da família, da saúde, dos bens.
Eis como Job preencheu o seu vazio - "Nudus evertit ex utero matris mea et nudo reverterit illuc" - " Saí nú do ventre da minha mãe e nú voltarei para ele. O Senhor mo deu o Senhor mo tirou; Bendito seja o Nome do Senhor”.
A folha já não está branca. Ficou enegrecida com uma escrita miúda, nervosa, pouco ágil.  Encheu-se de ideias algo amontoadas, umas de certo, absurdas, outras talvez desafiantes e proporcionadoras de reflexão mais alargada e ambiciosa.  Não sei.
Sei que me livrei de um vazio real - a folha branca a irritar-me com a sua brancura inútil - e não de um vazio virtual.
Por isso, tenho agora a certeza, nada criei de virtuoso." Daniel Serrão, in site Daniel Serrão

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