quinta-feira, 3 de março de 2011

Recordar Mário Dionísio

"Mário Dionísio é um nome fundamental do neo-realismo, so­bretudo pela sua actividade de teórico, de crítico e de promo­tor. [...] Como ensaísta, deixa sobretudo um monumento durá­vel que é o notabilíssimo ensaio A Paleta e o Mundo, o qual fi­cará, entre nós, no género, como um livro único e uma façanha difícil de repetir. [...]
Parece-nos que o relevo da sua actividade crítica e ensaística ajudou a relegar para uma certa sombra injustamente discreta uma poesia de qualidade musical muito subtil, um canto manso mas que se quer insistente, uma voz fraternal e bem cedo isenta de demagogia, vastamente merecedores de melhor atenção. A «discreta alegria do mundo», de que fala um dos poemas de O Riso Dissonante, é bem uma metáfora desta sedutora música de câmara de um poeta que, tendo começado com as proclama­ções polémicas, sonoras e urbanas da sua «Arte Poética», bebi­da em Álvaro de Campos, bem cedo recolheu a ritmos mais subtis, originados talvez não tanto no seu amor a Éluard, como no seu próprio temperamento reflectido, recolhido e melómano."
Eugénio Lisboa in  "Poesia Portuguesa: do «Orpheu» ao Neo-Realismo"


 ARTE POÉTICA
A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.
Mario Dionísio, in “Poemas”, Coimbra, 1941, Col. Novo Cancioneiro nº 2
("Não conhecemos poesia anterior a esta [Poemas] em que haja da parte de qualquer poeta a confissão de uma identidade absolu­ta com a massa dos homens [...] ainda que não com absoluta exclusão do eu que tam­bém é." Alexandre Pinheiro Torres)

O irrecuperável
recuperado ei-lo aqui sorrindo
com a boca torcida mas feliz

com os braços esmagados mas feliz
o que não volta eis volta
por ignoradas mãos
numa hora esquecida
entre as horas marcadas 

possível  o recomeço
possível  o sobressalto
possível  o sonho solto
possível  um mundo novo
possível  o impossível

outro é o destino do homem
 Mário Dionísio, in “ O Riso dissonante” Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950, col. Cancioneiro Geral nº4

CONSCIÊNCIA
Cada minuto uma questão
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso

Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia Incompleta

Mário Dioníso nasceu em  Lisboa, a 16 de Julho de 1916 e morreu em Lisboa, a 17 de Novembro de 1993. Professor, pintor, ensaísta, crítico,  poeta   foi um resistente, um combatente ao serviço da justiça social e da Liberdade. Toda a sua variada escrita veicula a consciência da Modernidade, a de um homem íntegro  empenhado com o seu tempo. 

1 comentário: