terça-feira, 29 de março de 2011

Javier Heraud, poeta e revolucionário


POEMA

Mil países que
eu não conheço,
mil estrelas e
túneis,
mil países e povoados,
mil e uma pontes
incontáveis.
Desconhecido país:
em tuas portas já
me sinto torturado,
em tua boca já me
sinto mastigado,
em teus rios já
me sinto agora
e sempre e nunca
afogado.
Javier Heraud, in “ POESÍAS COMPLETAS Y HOMENAJE”, Lima
O poeta Javier Heraud, (1942-1963), nasceu em Lima e faleceu com apenas vinte e um anos. Poeta precoce, detentor de uma fluida riqueza poética, publica o seu primeiro livro "El rio" com apenas dezoito anos de idade. Oriundo de uma família abastada e apesar de ter estudado e viajado pelo mundo , abandona um futuro brilhante e confortável para se entregar à luta pela  libertação do seu povo oprimido por uma   infame exploração. Morre baleado por uma forte  carga policial no meio do rio Madre de Dios, quando integrava as forças guerrilheiras do Perú.
Manoel de Andrade  escreveu um excelente artigo sobre este grande poeta revolucionário que se transcreve parcialmente.
JAVIER HERAUD: a poesia e a vida por um sonho
Por Manoel de Andrade
(...)Os vinte e um anos da vida de Javier Heraud Pérez é parte da história da literatura política da América Latina nas décadas de 60-70, e que ainda está por ser escrita. Nessa memória, a poesia rebelde ocupa uma mágica galeria de mártires e sobreviventes, lembrando dezenas de poetas que empenharam suas vidas, seus sonhos e o encanto de suas metáforas para cantar a mística revolucionária pela lírica dimensão da poesia.
Javier Heraud foi a poética expressão do espanto ao testemunhar sua esperança e sua angústia numa sociedade cruel. O Peru era um país marcado pela mais descarada opressão e o desprezo por um povo indígena com o mais belo passado de glória do continente americano e que desde a conquista galga um longo calvário em seu destino.
Nascido em Lima, em 19 de janeiro de 1942, conheceu na juventude uma pátria convulsionada pelo domínio estrangeiro sobre as comunidades quéchuas dos Andes Centrais, pelas mais perversas práticas de servidão no trabalho agrícola, e por uma infindável injustiça, cuja impunidade precipitava a nação num perigoso abismo social. Começava a década de 60 e, pelo país inteiro os trabalhadores, há anos sugados pelo trabalho das minas e do campo, faziam suas primeiras marchas, sangrados pela repressão. Os camponeses, literalmente, para não morrer de fome, preferiam cair lutando para retomar as terras que lhes foram usurpadas. Nas grandes fazendas de açúcar, os trabalhadores estavam na vanguarda dessa luta. As grandes empresas norteamericanas ditavam suas ordens e o governo peruano as cumpria com o dedo no gatilho e lotando as prisões.
Os primeiros contatos com a vida acadêmica em San Marcos trouxeram a Heraud novas concepções sociais e políticas e houve um dia, um momento, em que ele começou a trocar os encantos de Miraflores pelas solitárias trilhas andinas de seu país, e as paisagens humanas que encontrou encheram-lhe a alma de assombro e amargura:
(…)”E lembrei de minha pátria triste
meu povo amordaçado
suas crianças tristes, suas ruas
despovoadas de alegria.
Lembrei, pensei, entrevi suas
praças vazias, sua fome,
sua miséria em cada porta.
Todos recordamos o mesmo
triste Peru, dissemos, ainda é tempo
de recuperar a primavera,
de semear de novo os campos, (…)
Triste Peru, aguarda,
nascerão de novos rios,
novas primaveras serão
devastadas por novos outonos,
e em cada face brilhará
uma alegria transbordante
e no povo, com sua força,
reunido e santo ” [2]
(...)O marxismo, com seu caráter científico e analítico da sociedade, sua mística ideológica, sua dimensão moral do “homem novo”, seu legítimo romantismo semeado pela aventura da Sierra Maestra e a saga de Che Guevara, transformou-se numa mágica convocação, numa cartilha de sonhos que, iluminada pela imagem da justiça social e da solidariedade com os pobres e oprimidos, unia, num gesto plural e despojado, intelectuais, estudantes e trabalhadores. Javier Heraud foi um exemplo eloquente dessa opção. Consciente de que somente a insurreição armada poderia banir a dominação oligárquica e o indisfarçável colonialismo que ainda predominava no Peru, escolheu colocar sua vida na balança do destino, embora sabendo que poderia encontrar a morte na travessia do seu sonho. Renunciando a uma grandeza literária que já se anunciava nas letras peruanas como um provável sucessor do grande Cesar Vallejo, não vacilou em despedir-se de si mesmo e assumir, com o codinome de Rodrigo Machado, a sublime missão de defender os oprimidos.(...)Em 14 de maio, depois de vários dias por trilhas amazônicas, essa vanguarda tática, da qual fazia parte Javier Heraud, chega a Porto Maldonado, uma pequena cidade, capital do departamento de Madre de Dios, a uns 40 quilômetros da fronteira boliviana, onde ficaram os demais. Entram na cidade, e o chefe do grupo, Alaín Elías, com 24 anos, é confundido com o guerrilheiro Hugo Blanco.(...) Javier ferido se recosta e todos os tiros concentram-se no seu corpo. Os estampidos se sucederam das onze e meia à uma da tarde como um sádico tiro ao alvo. É um tempo irreal, apavorante para duas vítimas indefesas, porque marca o supremo desespero da sobrevivência. As explosões ecoavam como mágicos relâmpagos explodindo o sacrário da esperança de dois jovens sonhadores. De repente, o silêncio. Uma canoa que se mantém imóvel sobre as águas. A missão estava cumprida, a dignidade humana ultrajada, o massacre consumado por militares treinados para matar e por fazendeiros treinados pela ambição e pelo ódio. Estirado sobre o tronco flutuante, os olhos do poeta buscam ainda o azul, despedindo-se do querido céu da pátria. Quem sabe, no derradeiro alento, Javier Heraud tenha-se lembrado das palavras que alguma vez escreveu àquela que lhe embalou a infância:
“Recorda tu, recordem todos que meu carinho e meu amor crescerão sempre, que nada nem ninguém nos poderão separar, ainda que estejamos distantes, e que algum dia nos reuniremos para cantar e chorar juntos, para abraçar-nos e querer-nos mais. E que eu sempre serei o menino a quem tu tiveste nos braços ainda que haja crescido por este tempo que avança e destroça os anos, mas não as recordações.”(6 )
Depois de sua morte o Exército de Libertacão Nacional do Peru (ELN), em que militava, retomou a luta, em 1965, sob o comando de Héctor Béjar, e em sua memória a Organização passou a chamar-se Guerrilha Javier Heraud.
(...)No mês seguinte da morte do poeta, Neruda enviou esta carta à familia Heraud:
Universidade do Chile
Ilha Negra, junho de 1963
Li com grande emoção as palavras de Alejandro Romualdo sobre Javier Heraud. Também o valioso exame de Washigton Delgado, os protestos de Cesar Calvo, de Reinaldo Naranjo, de Arturo Corcuera, de Gustavo Valcárcel. Também li o comovente relato de Jorge A. Heraud, pai do poeta Javier.
Sinto que uma grande ferida foi aberta no coração do Peru e que a poesia e o sangue do jovem caído seguem resplandecentes, inesquecíveis.
Morrer aos vinte anos crivado de balas “desnudos e sem armas no meio do rio Madre de Dios, quando estava à deriva sem remos …” o jovem poeta morto ali, esmagado ali naquelas solidões pelas forças das trevas. Nossa América escura, nosso tempo escuro.
Não tive a ventura de conhecê-lo. Pelo que vocês contam, pelo que choram, pelo que recordam, sua curta vida foi um deslumbrante relâmpago de energia e de alegria.
Honra à sua memória luminosa. Guardaremos seu nome bem escrito. Bem gravado no mais alto e no mais profundo para que continue resplandecendo. Todos o verão, todos o amarão no amanhã, na hora da luz.
Pablo Neruda
[2] HERAUD,.Javier. Poesías Completas, in: “Vida y muerte en la poesía de Javier Heraud” Lima, Campodónico Ediciones, 1975.
(6)HERAUD, Javier. Op. Cit.
Manoel de Andrade, Curitiba, Brasil

Ler o artigo completo:http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/2011/03/09/javier-heraud-a-poesia-e-a-vida-por-um-sonho-1-por-manoel-de-andrade-curitiba

Sem comentários:

Enviar um comentário