sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Jorge Amado em "A Morte e a Morte de Quincas Berro D´Agua"

Revisitar a obra de Jorge Amado é  um cerimonial imperfeito porque nunca se completa e requer sempre um recomeço. Tal é a  fecundidade que a atravessa que novas descobertas se propalam incessantemente:  um  texto que se lateralizou, um conto que se preteriu, uma novela que se devorou. Deixámos escapar na força    assombrosa  desta  escrita ímpar  de Jorge Amado,  muita da acuidade que concentramos noutras leituras.  O fascínio encantatório que nos  acomete retém quase muito, mas não tudo,  pelo que nos exige uma (re)visita feita  em recomeço aprazado e ilimitado.
Em  Abril de 1961, no Discurso de tomada de posse na Academia Brasileira , Jorge Amado já não se apresentava sozinho.Trazia consigo uma imensa obra onde pululava um rol de personagens que entrava, então,  pela porta grande partilhando com ele o mesmo fardão, aquele que vestem as   pessoas simples do povo.  Ouçamo-lo:
"Sr. Presidente, Senhores Académicos:
(...)Tenho a alegria de ter conservado jovem o coração, por não ter rompido jamais a unidade entre minha vida e minha obra, e por ter a certeza de que jamais a romperei.E quando aqui chego, chegam a esta casa, a esta tribuna, vestindo este fardão, pessoas simples do povo, aqueles meus personagens, pois é por suas mãos que aqui ingresso. Vêm mestres de saveiros e pescadores. Mestre Manuel, Maria Clara, Lívia e Guma, e sua ansiosa espera da morte no mar; vêm negros e mulatos, pai-de-santo Jubiabá e o negro Balduíno, Rosenha Rosedá e o Gordo, vêm as crianças abandonadas, os capitães da areia, trabalhadores dos campos de cacau e rudes coronéis de repetição em punho; vêm o rei das gafieiras da Bahia, Quincas Berro D'água, a mulata Gabriela feita de cravo e de canela, e o comandante Vasco Moscoso de Aragão, que amava sonhar e comandava os ventos. Gente simples do povo, não sou mais de que ele, e se os criei, eles me criaram também e aqui me trouxeram. Porque eles são o meu povo e a vida que tenho vivido ardentemente(...)". Jorge Amado, Abril de 1961
"A Morte e a Morte de Quincas Berro D´Agua" inclui-se nessa galeria onde se agita o povo porque com gente do povo foi construida. É uma das mais belas novelas de Jorge Amado . Conta a história fantástica da morte de Quincas Berro D' Água, antigo e respeitável Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário  da Mesa de Rendas Estadual , que abandonou um dia uma modelar e pacata existência  e se fez o rei das gafieiras da Bahia .  Foi considerada uma obra-prima por Vinicius de Moraes, como denotam as suas palavras: " Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu, que andava no maior fastio da literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século XIX, Pushkin, Dostoievski, Tolstoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa quando se está com sede ou fome  e os da cama quando se ama. Ela representa, dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo."
Hoje é o  tal dia aprazado para  honrar  esta novela de Jorge Amado,  pelo que se transcreve  um pequeno  excerto:

"(...) Tantas testemunhas idóneas , entre as quais Mestre Manuel e Quitéria de Olho Arregalado , mulher de uma só palavra , e, apesar disso, há quem negue toda e qualquer  autenticidade  não só à admirada frase mas a todos os acontecimentos  daquela noite memorável , quando, em hora duvidosa  e em condições discutíveis , Quincas Berro D' Água  mergulhou no mar da Baía e viajou para sempre , para nunca mais voltar.
(...)  Suspenderam as velas do saveiro, puxaram a grande  pedra que servia de âncora. A Lua fizera do mar um caminho de prata, ao fundo recortava-se na montanha a cidade negra da Baía. O saveiro foi-se afastando devagar. A voz de Maria Clara elevou-se num canto marinheiro:
                                     No fundo do mar te achei
                                     toda vestida  de conchas...

(...)Mestre Manuel avisou:
 - Vai ser noite de temporal, é melhor voltar.
Pensava ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. Era, porém , amável a cachaça, gostosa a conversa , havia ainda muita arraia no caldeirão, boiando no amarelo, do azeite de dendê, e a voz  de Maria Clara dava uma dolência , um desejo de demorar nas águas. Ao demais , como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela noite de festa?
Foi assim que o temporal , o vento uivando, as águas encrespadas, os alcançou em viagem. As luzes da Baía brilhavam na distância , um raio rasgou a escuridão. A chuva começou  a cair. Pitando seu cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme.
Ninguém sabe como Quincas se pôs de pé , encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a lavar o saveiro , para os raios  a iluminar o negrume. Mulheres e homens  se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada momento. Silenciara a voz de  Maria Clara, ela estava junto do seu homem na barra do leme.
Pedaços de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do cachimbo de mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé, cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro. Aproximava-se o saveiro lenta e deficilmente das águas mansas do quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria.
Foi quando cinco raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das mulheres e  dos homens, a gorda Margô exclamou:
- Valha-me Nossa Senhora!
No meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.
Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.
(...) Quanto à frase derradeira , há versões variadas. Mas quem poderia ouvir direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do Mercado passou-se assim:

                                      No meio da confusão
                                      ouviu-se Quincas dizer:
                                      " - Me enterro como entender
                                      na hora que resolver.
                                      Podem guardar seu caixão
                                      para melhor ocasião.
                                      Não vou deixar me prender
                                      em çova rasa no chão."
                                      E foi impossível saber
                                      o resto de sua oração.
                                                                            Rio, Abril de 1959"
Jorge Amado, in " A Morte e a Morte de Quincas Berro D' Água", Publicações Europa- América, Mira-Sintra, Mem Martins, Junho de 1978

2 comentários:

  1. Óptima selecção sobre Jorge Amado. Quincas Berro D'Água é uma das mais emblemáticas personagens do universo policromático deste escritor.

    ResponderEliminar
  2. A leitura deste texto "transportou-me" aos tempos da minha adolescência, no final dos anos 60, quando nas longas tardes de verão ficava em casa a ler, deleitando-me precisamente com os livros de Jorge Amado, as suas personagens, a sua forma de descrever uma época e uma sociedade tão distantes desta pequena cidade onde eu vivia. Bem-haja por dar o merecido destaque a este grande escritor !

    ResponderEliminar