quinta-feira, 11 de novembro de 2010

TRANSPARÊNCIA


Em 1968 e 1969 o romance " A Brincadeira " foi traduzido em todas as línguas europeias, sendo  as traduções feitas com excesso de liberdade e falta de rigor.   "O choque causado pelas traduções de " A Brincadeira" marcou-me para sempre" , - confidencia  Milan Kundera.   A partir dessa descoberta, o escritor  dedicou algum tempo do seu trabalho à revisão das  traduções das suas obras até que o seu  amigo Pierre Nora, director da Revista " Le Débat" lhe lançou o seguinte desafio: "Esquece lá os teus tormentos e escreve qualquer coisinha para mim. As traduções obrigaram-te a reflectir sobre cada uma das tuas palavras. Escreve portanto o teu dicionário pessoal. O dicionário dos teus romances. As tuas palavras-chave, as tuas palavras-problema, as tuas palavras-amor..."
" E foi isso que eu fiz." - declara Milan Kundera.
E assim nasceu o dicionário base das palavras-chave que percorrem os seus romances e das palavras-chave da estética dos seus romances.  Desse dicionário,  escolhemos, hoje,  a palavra TRANSPARÊNCIA, palavra  que escasseia tanto no nosso horizonte político. Sobre ela Milan Kundera escreveu  o seguinte :
" TRANSPARÊNCIA . No discurso político e jornalístico, esta palavra significa: o desvendar da  vida dos indivíduos, perante o olhar público. O que nos remete para André Breton e para o seu desejo de viver numa casa de vidro sob os olhares de todos. A casa de vidro: uma velha utopia e, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais assustadores da vida moderna. Regra: mais os assuntos de estado são opacos, mais transparentes devem ser os assuntos de um indivíduo; a burocracia, embora represente uma coisa pública, é anónima, secreta, codificada, inintelígível, enquanto o homem privado é obrigado a desvendar a sua saúde, as suas finanças, a sua situação de família, e, se o veredicto mass-mediático assim o decidiu, não encontrará  mais um único instante de intimidade, nem em amor, nem na doença, nem na morte. O desejo de violar a intimidade de outrem é uma forma imemorial de agressividade que, hoje, está institucionalizada ( a burocracia com as suas fichas, a imprensa com os seus repórteres), moralmente justificada ( o direito à informação transformado no primeiro dos direitos do homem) e poetizada ( pela bela palavra transparência).

Milan Kundera, in " A Arte do Romance", Edições D. Quixote

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