quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Deixa entrar no poema

Pintura de  Almada Negreiros
Porque dos mortos
se incumbem as estrelas
da guerra e da paz
basta para meu enredo

que de manhã a noite abra
o seu redil de sombras
uma delas me fareje
e se estenda a meus pés

e ali tose um caracol
suas verdes minúcias
levando às costas
a maciça cabriola.

Sebastião Alba, in " O Limite Diáfano ", 1996/2000,



«Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba»
Provérbio Burundi

Deixa entrar no poema
alguns clichés.

Submetidos à experiência inefável,
sua carga (eléctrica?)
escoar-se-á.

Não há uma vala comum para as palavras
decaídas,
um dicionário no inferno;

mas deixa-as vir à tona
da claridade,
e nada lhes insufles. Vê:

não suportam a beleza
que as circunda, abismam-se
em seu ridículo.


Sebastião Alba, in " A Noite Dividida ", Assírio & Alvim, 1996

Sebastião Alba morreu atropelado, em 2000.
«Era um poeta e vivia na rua, como um mendigo, por opção, para não ser cúmplice. Tinha o nome nas enciclopédias mas os seus haveres eram um saco de plástico com papéis, um pão e uma garrafa de vinho, e um rádio a pilhas sempre sintonizado na Antena 2.»
Paulo Moura, in Público, 20 de Novembro de 2000


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