segunda-feira, 4 de outubro de 2010

4 de Outubro de 1910

No volume II das "Memórias" no Cap. " O Meu Diário" , Raul Brandão relata-nos os dias da República, numa prosa dinâmica e viva, convertendo-o num dos mais expressivos e notáveis documentos desse época.
O Dr. Miguel Bombarda, ( obreiro da República), fora  assassinado por um antigo doente, no dia 3 de Outubro de 1910,  mas a divulgação da sua morte foi alvo de grande especulação, gerando uma enorme revolta entre a população de Lisboa.
É com a alusão a esse  cruel episódio  que   Raul Brandão inicia o relato do   dia  4 de Outubro de 1910 em " O  Meu Diário" :

"4 de Outubro de 1910
Mataram o Dr. Bombarda. Espalha-se na cidade que foram os padres que instigaram um tenente a assassiná-lo. É falso , mas há correrias no Rossio e o Portugal foi apedrejado. Toda a gente se insurge contra o facto brutal - toda a cidade republicana se transforma num vulcão. No Rossio juntam-se grupos de gente taciturna  e desesperada: - Mataram-no! Mataram-no! - ouve-se. À uma hora da noite o Machado dos Santos, à frente dum bando de populares, atira-se ao portão de Infantaria 16.

                                                                                   *
De manhã até às quatro horas ouço o canhão e descargas de fuzilaria. O meu bairro tranquilo: um vizinho sacha as suas couves com indiferença. As lojas fecharam. Ajuntam-se grupos pelas esquinas. De segundo em segundo a artilharia troa. Saio. No Chiado encontro o Alpoim:
  - A minha convicção é que os revolucionários perdem, mas a Monarquia não se salva. Como resistir ao sangue, aos ódios e aos julgamentos que há-de ser fatalmente o processo dos últimos reinados?
E com um sorriso irónico conclui:
  - Esta tarde o rei sai para a rua à frente de uma brigada...

                                                                                    *
Alguém que esteve de manhã na Rotunda afirma que os revolucionários não passam de quinhentos. Entre eles populares esfarrapados, galegos e mulheres da feira de Agosto (1) . Algumas davam beijos aos soldados, que as sacudiam:
  - Deixa-me, isso não é para aqui.
Um homem descalço empunhava uma grande espada, dando ordens:
  - Estamos à espera da artilharia de Queluz.

                                                                                      *
Consta que o almirante Cândido dos Reis se suicidou; consta que mataram o comandante da Guarda, o que é falso. Quem assassinaram foi um oficial e o comandante do 16. « Despachámo-los», segundo a frase cruel dum popular no País.

                                                                                       *
A Marinha está com os revolucionários. Agora, três e meia da tarde, cessam de todo as descargas para recomeçarem com violência às quatro e meia. Às seis horas um cruzador abre fogo contra o Arsenal e o Terreiro do Paço. Está um céu de labaredas.
Outro vaso de guerra desce o rio e coloca-se em frente das Necessidades.
Às dez e meia da noite sei mais notícias: os navios bombardearam o Paço; as tropas fiéis à Monarquia estão encurraladas no Rossio. E o Maximiliano de Azevedo conta-me:
  - Já de outra vez quem comandava tudo era o Cândido dos Reis, que me disse : « Não dei o sinal a vinte e oito de Janeiro porque mataram o João Franco. Tinha duas esperas, mas os bandos não se colocaram a distância a que se avistassem, e o ditador escapou. Eu estava à beira-rio, pronto a dar o sinal à Armada, e via as lanchas carregadas de munições - cuja existência o Governo desconhecia - deslizavam no escuro para bordo. »
(1)  V., Sr Redactor, sabe que na Rotunda estiveram combatendo muitos galegos e que foi um que desde o primeiro momento se pôs  a sua disposição, saindo com v. do Centro de Santa isabel; este galego é José Amoedo, chefe do grupo Lix. (  In " Intransigente" , 12 de Abril ) "

Raul Brandão, in  " Memórias " , Volume II - Livraria Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, s/d (1925)

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