quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sobre o desemprego

À procura de novos paradigmas
Por Baptista Bastos

Sou particularmente sensível ao fenómeno do desemprego. Por duas vezes passei por essa situação, qual delas a mais dolorosa.
A primeira vez com 26 anos; a segunda, com 55. Ambas por motivos políticos. Tinha três filhos e, ao todo, sete pessoas a meu cargo. Deitei mão a tudo: escrevi discursos para empresários, para políticos e, até, de apresentação de um ano lectivo. Traduzi livros em quinze dias. Utilizava máquina de escrever e o ruído que ela fazia, pela noite fora, até madrugada, incomodava a minha mulher e os meus filhos, muito pequenos. Para não perturbar os seus sonos, por vezes fechei-me na casa de banho. Certa ocasião, o meu cansaço era tanto que adormeci.
Nada da minha história é importante. Serve para lhes dizer que é muito difícil, quase impossível, que eu desista das dificuldades, quaisquer que elas sejam. A minha resistência é, afinal, a resistência de qualquer homem normal. Creio.
O desemprego comove-me. Sei o que se passa nessa horrível situação. Chegam a evitar-nos, quando nos vêem, talvez receando que lhes possamos pedir dinheiro. Camilo Castelo Branco escarmentou-os muito bem: "Amigos, cento e dez ou talvez mais / eu tive um dia; / porém, ceguei, e desses cento e dez impávidos sacanas / só um ficou." É uma experiência extrema, no interior da qual a solidariedade parece arredia.
Sinto um nó na garganta quando as televisões noticiam (é diário) este e aquele encerramento de fábricas, de oficinas, de empresas. Os rostos daquelas mulheres e daqueles homens, condenados por um crime que não cometeram, fazem-me estremecer de indignação. Sirvo-me, então, dos meios de que disponho e dos processos que me são caros: escrevo por eles, com eles e ao lado deles. Cada desempregado é um camarada, um amigo e um companheiro perto ou longínquo. Quando as grandes multinacionais, depois de auferirem benesses e benefícios do Governo, se passam para outro país, onde a mão-de-obra é mais barata, aí, a minha ira, o meu furor, a minha cólera sobem de nível. O capitalismo não dispõe de um pingo de decência.
Mas o capitalismo, temos de o dizer, cumpre os seus desígnios: o lucro, pelo lucro. O socialismo promete este mundo e o outro. O capitalismo não promete nada, a não ser miséria, e a distribuição de umas escassas migalhas. Não tenhamos dúvidas. O capitalismo apenas promove algum bem-estar quando pressionado pelos sindicados, pelos grandes movimentos sociais.
Estamos à beira de qualquer coisa de incontrolável. Vivemos, não só em Portugal, mas no resto do mundo, sentados num barril de pólvora. No nosso país são mais de 600 mil desempregados. E nenhum Governo faz algo que limite esta desgraça. O PSD apenas fala, e fala em excesso, pela voz de Pedro Passos Coelho. E, em vez de propor decisões, faz ameaças. Só um mentecapto admitirá como certa a resolução da crise através das alterações à Constituição. Tenho pena de dizer o que vou dizer: mas Passos Coelho também não serve. Que nos resta?, dando-se de barato que nem o PCP nem o Bloco de Esquerda conseguirão chegar ao poder. Pelo menos nas actuais circunstâncias e com o gaseamento intoxicante e manipulador consumado, acriticamente, por uma Imprensa, uma Rádio e uma Televisão que somente seguem, bovinamente, a ideologia das classes dirigentes. E não me venham com o comunismo, com o papão do comunismo, com a ameaça do comunismo. A técnica ainda pega. Porém temos de combater a pecha letal. Quando fui professor, numa Universidade de Lisboa, incitava os meus alunos ao conhecimento, à paixão e à vontade. Não há superstições nem maldições. E os portugueses são tão bons no trabalho, na criatividade, na inventiva, como quaisquer outros.
As coisas são-nos apresentadas como factos consumados e absolutamente indiscutíveis. O inimigo a abater é sempre aquele, homem, movimento ou causa, que seja recalcitrante deste mórbido estado das sociedades actuais. Todavia, o que está condenado, mais tarde ou mais cedo, é a renúncia a pensar, a aceitação cabisbaixa do que se nos expõe como inelutável.
A última crise do capitalismo, cujas consequências não pararam, nem, sequer, estacionaram, não é a derradeira. Nem a dobra da crise fará nascer, ou renascer, como se queira, o socialismo. Decorrerão décadas e décadas até que a humanidade descubra um outro modelo para se estabelecer um outro modo de vida. Contudo, creio que muitas coisas estão a ser postas em causa, e as doenças morais, éticas, políticas e religiosas que nos envolvem vão ter de encontrar soluções. Soluções humanas. Soluções do homem para o homem. O próprio paradigma da Esquerda, mais marcado pela Comuna de Paris do que da Revolução Francesa, terá de se modificar. Já está a modificar-se. Sem ter de claudicar ante a ofensiva neoliberal, nem de trair os testamentos que a formaram e continuam a legitimar.

Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no " Jornal de Negócios " de 17 de Setembro de 2010

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