domingo, 20 de junho de 2010

A poesia de Saramago



Espaço curvo e finito

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.


Science-fiction I


Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.

Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.

Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.

Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.

Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.

Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.

Julieta a Romeu

É tarde, amor, o vento se levanta,
A escura madrugada vem nascendo,
Só a noite foi nossa claridade.
Já não serei quem fui, o que seremos
Contra o mundo há-de ser, que nos rejeita,
Culpados de inventar a liberdade.


Romeu a Julieta

Eu vou, amor, mas deixo cá a vida,
No calor desta cama que abandono,
Areia dispersada que foi duna.
Se a noite se fez dia, e com a luz
O negro afastamento se interpõe,
A escuridão da morte nos reúna.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis", Lisboa - Editorial Caminho, 1981, 3ª edição

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