segunda-feira, 19 de abril de 2010

Viver na mentira e no medo do futuro

Por BAPTISTA-BASTOS
Perguntamo-nos, entre a perplexidade e o espanto, se exercemos o suficiente das nossas recusas para que nos não acontecesse a "dimensão" única que nos é rudemente imposta. Parece uma conjugação de perversidades, sem conciliação possível com os nossos dramas. José Sócrates insulta-nos quando a "crise internacional" se converte na categoria central do seu discurso político. E trata-nos como beócios como quando, anteontem, foi à televisão "explicar" o PEC. A verdade é singela: muito antes dos sismos cíclicos do capitalismo, já sofríamos a desestruturação trazida pelo "mercado". Sócrates não dispôs, por absoluta ignorância, de um projecto que se opusesse a essa ofensiva. E havia algumas possibilidades alternativas, entre as quais as propostas contidas num livro do socialista Fernando Pereira Marques, Esboço de Um Programa para os Trabalhos das Novas Gerações, lamentavelmente pouco conhecido.
Um ensaio muito sério, muito original e muito estimulante, editado em 2007, por um intelectual para quem Portugal está longe de ser uma nação condenada. "É necessário encontrar novas vias para a reforma radical do modelo de sociedade e de economia que se impôs nos países desenvolvidos, à custa do atraso, da pobreza e até da guerra em que vivem os demais." Eis um dos poucos livros que criticam o capitalismo, cuja análise anda arredia das nossas preocupações. Na imprensa, então, o supérfluo representa uma simbiose da imperícia e do desconhecimento das lógicas de poder.
Sócrates fez o que lhe era possível, dir-se-á. Não. Sócrates fez o que a consciência socialista (o que quer que isto seja) verberaria com impetuosidade. A extensão e os danos deste ciclo político podem pôr em causa a democracia. No nosso caso, o pouco que dela resta. O primeiro-ministro abriu caminho para o que de pior certamente advirá. E os putativos substitutos podem mesmo reclamar ainda mais penosos sacrifícios da nossa parte. Sócrates exacerbou as dimensões racionais da vida social. A sociedade portuguesa vive na ambivalência da inferiorização e da revolta. Quando ele diz que não vai aumentar impostos; que os ricos irão pagar mais; que as nossas penas e os nossos pesares serão minimizados, está a fugir da verdade a sete pés. A associação da ética republicana (de que tanto fala), com a assunção da linguagem dos factos, distingue a honra e a decência da trapalhice e da ambiguidade. José Sócrates, que arrastou consigo um pesado descrédito para o PS, conjugou a sua debilidade ideológica com uma insaciável sede de poder - que percorre, invariavelmente, aqueles que são passíveis de variações consideráveis.

Artigo de Opinião de Baptista Bastos publicado no "Diário de Notícias", em 10/03/2010

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