domingo, 14 de março de 2010

Resistir é uma forma de combater


Por Baptista Bastos
Não há motivação, na sociedade portuguesa, que consiga alterar a inércia em que nos encontramos. Vem aí o PEC e o pouco que do documento sabemos deixa-nos desassossegados, mais desassossegados do que até aqui nos encontrávamos. Sócrates aparece, fala dois minutos, vai embora e lega aos outros a maçada de nos esclarecer. Nenhum dos membros do Governo, de plantão para a funçanata, esclareceu coisa alguma. Fomos sabendo do infortúnio que nos aguarda através dos especialistas em economia. E as informações, repito, são de molde a deixar-nos espavoridos.
O PEC é uma pouca-vergonha. Um trapo cheio de remendos. Uma negaça mal amanhada, com uns truques pelo meio, como aquele de se proceder a outra fiscalidade a quem aufira, por ano, mais de 150 mil euros. Somos nós quem vai pagar a crise. Nós, o resto, numeroso, dos portugueses para os quais nada se oferece e tudo se tira.
Toda a nossa vida tem sido um processo de demolição empreendido por este Governo (mas também por outros) que nos fez entrar na mais dolorosa letargia, porque nada nos acena a mais escassa e módica esperança. Sócrates serve-se de nós, com um impudor que raia a esquizofrenia. Qual o conceito que possui de poder? Democrático não é, certamente.
Este novo golpe do PEC nem sequer lhe mereceu o cuidado de ser explícito, claro, pausado e mobilizador, tendo em conta a brutalidade das propostas. Porém, já nos habituámos a estas manifestações de sobranceria. Os "intocáveis" continuam os mesmos. Os vencimentos sumptuosos talvez apenas sejam atingidos por pequenas amolgadelas. Nós é que vamos pagar tudo. E não somos culpados de nada. Os responsáveis do descalabro a que chegámos ficarão alegremente impunes, nem sequer o ferrete da indignidade nacional (que, em França, depois da guerra, se converteu em figura jurídica) lhes será aplicado. Esta gente faz o que quer, não presta contas (a penalização dos votos é uma rábula consecutiva) e passa à frente.
Este ciclo político que está moribundo terá continuidade no que se lhe segue. As indicações que temos dizem--nos que os candidatos à chefia do PSD, e um deles putativo candidato a primeiro-ministro, não harmonizam nenhuma ideia, diferente das que até agora têm articulado o nosso pobre destino. É tudo mais do mesmo: privatizações, entregar ao "mercado" a solução dos problemas, mesmo quando o "mercado" é o que é e o que nós sabemos, impostos directos ou indirectos - enfim, todo o breviário com que a globalização da economia, cega e surda, sobrecarregou as nossas já atávicas desgraças.
O Governo Sócrates não presta para nada. Está visto e provado. Mas as ameaças que se seguem fazem temer o pior. Os Governos, perante a abertura dos mercados, tal como as redes de comércio, e as estratégias planetárias das grandes empresas, encontram-se fragilizadíssimos. Todavia foi a inacção da política que permitiu a sobreposição da economia. É preciso entendermos que a nação deixou de ser o quadro simbólico e territorial como anteriormente se conhecia. Não mandamos em nada do que julgávamos nosso. Porque também é preciso compreender que a zona a que chamávamos "pátria" não nos pertencia: era propriedade dos grandes cavalheiros da indústria, dos latifundiários e de um ou dois grupos financeiros. Quando apelam à nossa colaboração (nos sacrifícios económicos como nas guerras e em outras manifestações de falsa posse) apelam que façamos a defesa daquilo que nos não pertence.
O que, neste momento, é de nós exigido, melhor: que nos é rudemente imposto por um Governo, dito, mentirosamente, de "socialista", faz parte do discurso do poder quando o poder se sente cercado. Deixámos, há muitos anos, de proceder de fontes directamente culturais e de valores que haviam instituído uma certa maneira de viver. Este Governo e os que o antecederam (sublinhando a calamitosa herança de Durão Barroso e o intermezzo cómico de Santana Lopes) depredaram o que ainda existia (a década cavaquista foi o prelúdio à fatalidade) de sentimento de comunidade, de laços afectivos de solidariedade e de "presença." Todos os políticos nomeados estavam desprovidos de sentido cultural e, em muitos casos, manifestavam liminar ignorância. Recordo-me de, certa vez, conversando, com Eduardo Prado Coelho, sobre Durão Barroso, com quem ele simpatizava, o meu amigo, como que a defendê-lo, disse: "Mas olha: é leitor de Maria Gabriela Llansol." Fiquei calado de espanto.
Estas minhas inquietações e, amiudadas vezes, a veemência com que defendo ideias, não é de agora. Vem de muito longe. Desse imperativo que sempre me impeliu a criticar posições de recuo e de fechamento, sobretudo em relação àqueles, politicamente com responsabilidades histórica, que traíram os testamentos e espezinharam sonhos e esperanças.
No entanto, vale a pena acreditar porque vale a pena resistir: resistir é uma forma de combater.

Artigo de Opinião de Baptista-Bastos, publicado no "Jornal de Negócios", em 12/03/2010

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