sexta-feira, 19 de março de 2010

Carta a meu Pai


Pai

Deixou-me e, agora, tenho dificuldade em explicar-lhe como tudo isto se transformou. A cidade cresceu muito e as pessoas já não se falam todos os dias, nem mesmo quando se cruzam na rua . Correm muito e desejam ver os dias a correr também. Quando a noite chega, olham para os filhos e apressadas jantam novamente, em correria, para que tenham tempo de tudo preparar para o dia seguinte. Os filhos, grandes e pequenos, já se habituaram ao frenesi deste quotidiano. Muitos deles, pequeninos, ainda de fraldas, saem pela madrugada, rumo ao infantário onde a Mãe os deposita até ao fim do dia. E é assim, dia após dia, para aqueles que trabalham. Muita desta gente abandonou a aldeia ou o meio rural à procura de uma vida melhor. Será ? Por vezes, não tenho a certeza de que isto seja verdadeiro, tenha realmente acontecido.
Mas o que ainda não sabe e que se apresenta como tragédia maior, é que existem centenas e centenas de milhar de pessoas que suspiram para poder ingressar no seio desta automatizada organização que regula esta gente, o Trabalho. Pois é, são muitas famílias sem que alguém tenha qualquer trabalho, sem que alguém tenha qualquer fonte de rendimento. O trabalho desapareceu e a fome voltou em força. Sim, Pai, a fome está de volta. Não é a mesma do século passado. Esta é ainda mais feroz, mais faminta porque nem se sabe quando nos bate à porta e muito menos quando termina.
Todas as semanas nascem novos pobres que já tudo tiveram. Novos pobres a quem tiram até as próprias casas porque sem emprego não as podem pagar. E os filhos ficam o dia inteiro nas escolas, sobrevivendo porque a cantina lhes propicia uma refeição e, à noite, os Pais socorrendo-se do Banco Alimentar, e enganando a fome durante todo o dia, colocam um jantar na mesa. E , então , todos juntos adormecem a fome.
Eu sei que ser pobre era estar pobre (nada ou quase nada ter) e que sempre fora assim, mas a pobreza deste século é uma pobreza total, indigna. Não tem limites, nem perspectivas. A esperança de um futuro foi penhorada e isso torna o pobre ainda mais pobre.
Nós acreditávamos no futuro e na capacidade regeneradora do homem, quando a pobreza lançava a rede. Agora está-se na rede do desespero, dos dias de luto e do jejum imposto.
A multidão acotovela-se em tudo e por tudo. São filas intermináveis nos Centros de Emprego, nos Centros de Saúde, nos Centros da Segurança Social e na vergonha de quem não pode pedir esmola.
Não sei, Pai, se ainda se lembra como o Sol brilha e que linda é a nossa terra com toda essa luz. Pois, continua luminosa , mas de uma beleza muito mais efémera e distante.
O Pai concluirá que para aceder ao belo é necessário que a sombra não tape o nosso horizonte.
Não sei, Pai, se estaria muito feliz com este país se cá estivesse hoje. No entanto, as tantas e longas saudades da sua ausência fazem-me acreditar que, apesar de tudo, seria um óptimo dia do Pai.
Um abraço para SEMPRE.

1 comentário:

  1. Uma carta emotiva e diferente maneira de celebrar o Dia do Pai. O mundo mudou muito para aqueles que partiram.

    ResponderEliminar