sábado, 3 de outubro de 2009

A vocação ostentória portuguesa permanece...


A vocação ostentória e boémia da nova classe política, militar e civil passa as raias do entendimento e só em termos freudianos pode ser compreendida. Nos tempos oficialmente económicos do mal falecido fascismo, o regime organizava em permanência sumptuosos banquetes publicitários ( centenários, congressos, celebrações de tudo, canonizações de obscuros bispos de séculos em que Portugal não existia) destinados a comprar as consciências mais delicadas da democracia ocidental. Os que assistiam a esses ágapes podiam lembrar-se deles e evocá-los com trémulos na voz passados quinze anos, e os que os davam ,convertê-los em efemérides glosadas em tom épico nas colunas do Diário de Notícias, d' O Século ou do Diário da Manhã. A eterna ingenuidade dos profissionais dela podiam imaginar que, no dia em que esse regime do privilégio insolente e do arbítrio puro desaparecesse, essa escandalosa exibição para Europa ver cederia o lugar a uma democrática, austera aplicação dos dinheiros públicos. Engano puro: ninguém ousa apresentar a conta dos inumeráveis gastos do tipo sumptuário e exibicionista que os novos ricos da política nacional acharam por bem efectuar. Se a título individual a nossa mentalidade de ricos nos obriga a contorsões caras, mas com juros à vista, a título oficial, a mesma mentalidade opera sem entraves e a responsabilidade dissolve-se ao abrigo da vaga rubrica dos "interesses superiores do Estado". A primeira República nascera austera ,como o muito democrático comportamento de Teófilo o ilustrou. A segunda, que se quer revolucionária e socialista, nasceu ávida e esbanjadora como se o famoso "tesouro" do fascismo fosse herança pessoal da nova classe dirigente e não precário e precioso bem público. A austeridade pode ser um alíbi,mas a falta dela não é prova de revolucionarismo. A demagogia política e o reflexo estrutural que nos caracteriza combinaram-se para produzir o fenómeno pasmoso de alimentarmos a máquina económica com o dinheiro dos outros , gasto alegremente como se fosse nosso. Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado banquete dos "cravas" , para o etiquetar com a vulgaridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anónima, uma maquinação de poderes obscuros, uma "pouca sorte" que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem, e sobretudo entre quem parecia lógico que o fosse. Todavia alguém terá de pagar, cedo ou tarde, o preço que a aparência exige para ter um mínimo de realidade. Esse alguém é bem conhecido: chama-se povo, o povo que efectivamente trabalha e para quem, como escrevia Goethe, a maioria das revoluções que se fazem em seu nome não significam mais que a possibilidade de mudar de ombro para suportar a costumada canga.

Eduardo Lourenço, " Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos", in " O Labirinto da Saudade", Novembro de 2000, Editor Gradiva

Sem comentários:

Enviar um comentário