quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Herberto Helder — A Faca não Corta o Fogo: súmula & inédita


Herberto Helder — A Faca não Corta o Fogo: súmula & inédita, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
Talvez a poesia de Herberto Helder possa ser definida assim: a única que não aceita ser estudada transversalmente, a única que pede interlocução directa, aquela que, por excesso de obliquidade, só aceita ser abordada de frente. Ninguém entra nela para estudar alguma coisa que estivesse também noutra poesia ou na poesia em geral (se isso existisse). Alguma impossibilidade nesta definição? Não poderá uma escrita poética demarcar-se, acima de tudo, pelo modo de ler que acolhe ou selecciona, pelas manobras interpretativas que rechaça ou neutraliza? Um livro como A Faca não Corta o Fogo suscita questões desta ordem, quer se considere a sua primeira parte — a «súmula», que altera a súmula proposta pelo poeta, em 2001, sob o título Ou o Poema Contínuo —, quer se pense na segunda, isto é, nas setenta e cinco páginas que formam a parte «inédita» do volume agora editado. E mais ainda as suscita quando procuramos pensar este gesto de pôr dois livros na linha (contínua) de um livro só. Mas de que ordem são afinal tais questões? Parece conveniente falar aqui do que se pode, então, designar como uma axiologia da obra. Porque se uma obra vai ao ponto de fazer a «súmula» de si mesma (e recorde-se que a «súmula», em 2001, pretendia «estabelecer apenas as notas impreteríveis» do «poema contínuo pelo autor chamado poesia toda»), isso significa que adquiriu a faculdade de se julgar a si mesma, de separar no seu próprio corpus o preterível do impreterível, de destrinçar tão claramente o que lhe convém e o que lhe é pernicioso ou simplesmente supérfluo, que este poder se torna equivalente ao de quem não confunde os traços do seu rosto com os de qualquer outro, por muito grande que seja o parentesco, a afinidade ou a semelhança. É esse rosto da obra que não cessa de nos interpelar, tão fortemente talhado ou esculpido ele surge de cada vez que um novo texto subscrito por Herberto Helder nos chega às mãos. É com esse rosto que sentimos (falta melhor verbo para descrever o que se passa) a inderrogável necessidade de abrir diálogo, mesmo sabendo, como sabemos e como bem sabemos que Herberto sabe, que nenhuma leitura se confunde jamais com o que seria, na sua forma ideal, um autêntico diálogo. A inusual agitação mundana à volta desta publicação transmitiu a esse respeito sinais inequívocos: nos circuitos literários da web houve insistências várias na figura do poeta, no seu nome, vida e obra, por vezes mencionadas extensivamente. Eis o que se pode interpretar de múltiplas formas, nenhuma, porém, capaz de evitar este facto evidente: um livro novo de Herberto Helder é um acontecimento que se recusa a remeter-nos para o que quer que seja, salvo para a obra assinada «Herberto Helder». E mais: é um acontecimento que não acontece sem essa remissão absolutamente preponderante e exclusiva. Como leitores, somos interpelados pela força da obra que se reitera para de novo traçar o perfil da sua assinatura ou do seu rosto como se o traçasse agora de uma vez por todas, sem termos maneira alguma de escapar a esse efeito de sorvedouro que nos arrasta para o todo da obra, seja qual for a parte dela em que estejamos momentaneamente ocupados. Não é preciso pensar muito para intuir que é também nesse sentido que «a faca não corta o fogo» ou, por outras palavras, que nunca a continuidade do fogo se vê ou se quer ver posta em causa pelo desejo de aplicar a lâmina para separar partes de obra e, com esse gesto retalhador, procurar mais acessível inteligibilidade. Isto é: A Faca não Corta o Fogo é um título a que, afinal, se poderia acrescentar — como quem o explicasse — Ou o Poema Contínuo. Daí que não haja separação formal, nenhum separador graficamente desenhado entre a «súmula» e a «inédita», daí portanto que o título de uma parte (A Faca não Corta o Fogo intitula o material inédito enquanto conjunto formando um livro novo) seja também o novo título da outra parte, e ainda o título da junção das duas partes num livro único. Essa junção é uma junção sem juntura, pretende formar um tecido sem a marca de qualquer costura. E forma. Com um lucro inesperado: a designação mais intensa, menos abstracta (por via de um provérbio grego: não se pode cortar o fogo com uma faca), da poética da continuidade — essa poética cuja enunciação e prática consagra Herberto Helder como o grande antimoderno dos poetas modernos portugueses.
Nesse sentido, é também de explícita inspiração grega o poema que, da série dos inéditos, melhor propaga o magnífico anacronismo do «fogo» posto em título. Começa assim: «li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, / quando alguém morria perguntavam apenas: / tinha paixão?» (p. 205.) Não admira que os comentadores de Herberto se sintam hoje praticamente constrangidos a falar de «romantismo» quando tentam decifrar a inscrição de metáforas como a do «fogo», no seu perfeito acordo com uma axiologia poética que põe a «paixão» no topo de todos os critérios para aquilatar o sentido de uma vida: «quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: / […] paixão pela paixão, / tinha? / e então indago se eu próprio tenho paixão, / se posso morrer gregamente, / que paixão?» (id.) A memória dos «gregos antigos», porém, bastaria para desaconselhar vivamente a redução da antimodernidade de Herberto a um tímido anacronismo de dois séculos. Este «fogo» é, não só mais remoto, como sobretudo de uma qualidade que nos é mais estranha, porque nem sequer acredita nessa espécie de metafísica temporal (na essência, de invenção romântica) que abre clivagem e rivalidade entre antigos e modernos: à história, ao império do modo histórico (quer dizer: cortado, partido) de pensar, de escrever e de viver, a poética da continuidade opõe o desejo de existir sob o signo da fluidez e da paixão musical:

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna
(p. 206.)
Esta poética tem na morte uma das suas fontes primeiras de inspiração. Mas não a única e, desse ponto de vista, este volume é de uma coesão desconcertante: a verdade é que, entre a «súmula» e a «inédita», as linhas de contacto directo são tão sensíveis quanto são notórias as surpresas que marcam a energia criativa em acção nos poemas até agora desconhecidos. Tanto Manuel Gusmão como Rosa Maria Martelo, em artigos editados no Público (suplemento «Ípsilon» de 10 e 17 de Outubro, respectivamente), sublinharam a importância do tema da escrita, das figurações do acto poético que vão ao ponto de mencionar a concreta «bic preta» (p. 198), a «bic cristal preta doendo nas falangetas» com que começa um magnífico poema (p. 199) onde se ouvem ecos de um dos grandes textos em prosa de O Aprendiz de Feiticeiro, de Carlos de Oliveira. Essa micropaisagem tem, todavia, em Herberto Helder, o poder de se desdobrar de imediato em macropaisagem ilimitada, absoluta, e o poeta sentado — «por baixo / a cadeira eléctrica que vibra» (id.) — não se representa no instante de escrever sem marcar, do mesmo passo e com ênfase, toda a amplitude da escrita: «electrocutado, luz sacudida no cabelo, / a beleza do corpo no centro da beleza do mundo» (id.). Outro modo de afirmar a impossibilidade de cortar a luz e a intensidade do «fogo», vital e mortífero, sem cujo afluxo não haveria poema. Nada menos contemporâneo, claro, do que esta «beleza do corpo no centro da beleza do mundo», mas A Faca não Corta o Fogo, na sua enfática apologia da beleza — com o verso isolado «até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» (p. 133) abre o novo livro —, está a léguas de qualquer redoma esteticista. Ao invés, a força de demarcação crítica em relação a poéticas contemporâneas atinge aqui extremos de grande violência. Basta ler certo poema que arranca com uma autocitação do livro Photomaton & Vox, onde é muito menos o mundo académico em si mesmo do que, sobretudo, o academismo poético (com ou sem cátedra) que é invectivado em termos como estes:

não um dr. mas mil drs. de um só reino,
e não se tem paciência para mandar tantas vezes à merda,
oh afastem de mim o reino,
[…] ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extravasa do real feito à imagem da merda

(p. 172-3.)
O «fogo» que a língua poética de Herberto Helder transporta consigo já há muito que deixou claro como não há fogo sem incêndio. É uma questão, diz o extraordinário curto poema escrito «na morte de Mário Cesariny», de «ter um inferno à mão seja qual for a língua» (p. 206). O que é ou em que se tornou a língua portuguesa, depois de por ela passar um poeta como este, é ainda cedo para dizer. Enquanto não o dizemos, o poeta encarrega-se de insinuá-lo no corpo da sua própria «súmula»: ao acrescentar-lhe agora os poemas de Os Brancos Arquipélagos, lembra-nos uma radical experiência de invenção, delírio e extravagância idiomática como bem pode ser que não se tenha vivido outra em qualquer língua do mundo.


Por Gustavo Rubim, publicado em 23.10.2008 na secção Recensões Críticas , Revista Colóquio / Letras da Fundação Calouste Gulbenkian

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