quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Herberto Helder — A Faca não Corta o Fogo: súmula & inédita


Herberto Helder — A Faca não Corta o Fogo: súmula & inédita, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
Talvez a poesia de Herberto Helder possa ser definida assim: a única que não aceita ser estudada transversalmente, a única que pede interlocução directa, aquela que, por excesso de obliquidade, só aceita ser abordada de frente. Ninguém entra nela para estudar alguma coisa que estivesse também noutra poesia ou na poesia em geral (se isso existisse). Alguma impossibilidade nesta definição? Não poderá uma escrita poética demarcar-se, acima de tudo, pelo modo de ler que acolhe ou selecciona, pelas manobras interpretativas que rechaça ou neutraliza? Um livro como A Faca não Corta o Fogo suscita questões desta ordem, quer se considere a sua primeira parte — a «súmula», que altera a súmula proposta pelo poeta, em 2001, sob o título Ou o Poema Contínuo —, quer se pense na segunda, isto é, nas setenta e cinco páginas que formam a parte «inédita» do volume agora editado. E mais ainda as suscita quando procuramos pensar este gesto de pôr dois livros na linha (contínua) de um livro só. Mas de que ordem são afinal tais questões? Parece conveniente falar aqui do que se pode, então, designar como uma axiologia da obra. Porque se uma obra vai ao ponto de fazer a «súmula» de si mesma (e recorde-se que a «súmula», em 2001, pretendia «estabelecer apenas as notas impreteríveis» do «poema contínuo pelo autor chamado poesia toda»), isso significa que adquiriu a faculdade de se julgar a si mesma, de separar no seu próprio corpus o preterível do impreterível, de destrinçar tão claramente o que lhe convém e o que lhe é pernicioso ou simplesmente supérfluo, que este poder se torna equivalente ao de quem não confunde os traços do seu rosto com os de qualquer outro, por muito grande que seja o parentesco, a afinidade ou a semelhança. É esse rosto da obra que não cessa de nos interpelar, tão fortemente talhado ou esculpido ele surge de cada vez que um novo texto subscrito por Herberto Helder nos chega às mãos. É com esse rosto que sentimos (falta melhor verbo para descrever o que se passa) a inderrogável necessidade de abrir diálogo, mesmo sabendo, como sabemos e como bem sabemos que Herberto sabe, que nenhuma leitura se confunde jamais com o que seria, na sua forma ideal, um autêntico diálogo. A inusual agitação mundana à volta desta publicação transmitiu a esse respeito sinais inequívocos: nos circuitos literários da web houve insistências várias na figura do poeta, no seu nome, vida e obra, por vezes mencionadas extensivamente. Eis o que se pode interpretar de múltiplas formas, nenhuma, porém, capaz de evitar este facto evidente: um livro novo de Herberto Helder é um acontecimento que se recusa a remeter-nos para o que quer que seja, salvo para a obra assinada «Herberto Helder». E mais: é um acontecimento que não acontece sem essa remissão absolutamente preponderante e exclusiva. Como leitores, somos interpelados pela força da obra que se reitera para de novo traçar o perfil da sua assinatura ou do seu rosto como se o traçasse agora de uma vez por todas, sem termos maneira alguma de escapar a esse efeito de sorvedouro que nos arrasta para o todo da obra, seja qual for a parte dela em que estejamos momentaneamente ocupados. Não é preciso pensar muito para intuir que é também nesse sentido que «a faca não corta o fogo» ou, por outras palavras, que nunca a continuidade do fogo se vê ou se quer ver posta em causa pelo desejo de aplicar a lâmina para separar partes de obra e, com esse gesto retalhador, procurar mais acessível inteligibilidade. Isto é: A Faca não Corta o Fogo é um título a que, afinal, se poderia acrescentar — como quem o explicasse — Ou o Poema Contínuo. Daí que não haja separação formal, nenhum separador graficamente desenhado entre a «súmula» e a «inédita», daí portanto que o título de uma parte (A Faca não Corta o Fogo intitula o material inédito enquanto conjunto formando um livro novo) seja também o novo título da outra parte, e ainda o título da junção das duas partes num livro único. Essa junção é uma junção sem juntura, pretende formar um tecido sem a marca de qualquer costura. E forma. Com um lucro inesperado: a designação mais intensa, menos abstracta (por via de um provérbio grego: não se pode cortar o fogo com uma faca), da poética da continuidade — essa poética cuja enunciação e prática consagra Herberto Helder como o grande antimoderno dos poetas modernos portugueses.
Nesse sentido, é também de explícita inspiração grega o poema que, da série dos inéditos, melhor propaga o magnífico anacronismo do «fogo» posto em título. Começa assim: «li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, / quando alguém morria perguntavam apenas: / tinha paixão?» (p. 205.) Não admira que os comentadores de Herberto se sintam hoje praticamente constrangidos a falar de «romantismo» quando tentam decifrar a inscrição de metáforas como a do «fogo», no seu perfeito acordo com uma axiologia poética que põe a «paixão» no topo de todos os critérios para aquilatar o sentido de uma vida: «quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: / […] paixão pela paixão, / tinha? / e então indago se eu próprio tenho paixão, / se posso morrer gregamente, / que paixão?» (id.) A memória dos «gregos antigos», porém, bastaria para desaconselhar vivamente a redução da antimodernidade de Herberto a um tímido anacronismo de dois séculos. Este «fogo» é, não só mais remoto, como sobretudo de uma qualidade que nos é mais estranha, porque nem sequer acredita nessa espécie de metafísica temporal (na essência, de invenção romântica) que abre clivagem e rivalidade entre antigos e modernos: à história, ao império do modo histórico (quer dizer: cortado, partido) de pensar, de escrever e de viver, a poética da continuidade opõe o desejo de existir sob o signo da fluidez e da paixão musical:

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna
(p. 206.)
Esta poética tem na morte uma das suas fontes primeiras de inspiração. Mas não a única e, desse ponto de vista, este volume é de uma coesão desconcertante: a verdade é que, entre a «súmula» e a «inédita», as linhas de contacto directo são tão sensíveis quanto são notórias as surpresas que marcam a energia criativa em acção nos poemas até agora desconhecidos. Tanto Manuel Gusmão como Rosa Maria Martelo, em artigos editados no Público (suplemento «Ípsilon» de 10 e 17 de Outubro, respectivamente), sublinharam a importância do tema da escrita, das figurações do acto poético que vão ao ponto de mencionar a concreta «bic preta» (p. 198), a «bic cristal preta doendo nas falangetas» com que começa um magnífico poema (p. 199) onde se ouvem ecos de um dos grandes textos em prosa de O Aprendiz de Feiticeiro, de Carlos de Oliveira. Essa micropaisagem tem, todavia, em Herberto Helder, o poder de se desdobrar de imediato em macropaisagem ilimitada, absoluta, e o poeta sentado — «por baixo / a cadeira eléctrica que vibra» (id.) — não se representa no instante de escrever sem marcar, do mesmo passo e com ênfase, toda a amplitude da escrita: «electrocutado, luz sacudida no cabelo, / a beleza do corpo no centro da beleza do mundo» (id.). Outro modo de afirmar a impossibilidade de cortar a luz e a intensidade do «fogo», vital e mortífero, sem cujo afluxo não haveria poema. Nada menos contemporâneo, claro, do que esta «beleza do corpo no centro da beleza do mundo», mas A Faca não Corta o Fogo, na sua enfática apologia da beleza — com o verso isolado «até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» (p. 133) abre o novo livro —, está a léguas de qualquer redoma esteticista. Ao invés, a força de demarcação crítica em relação a poéticas contemporâneas atinge aqui extremos de grande violência. Basta ler certo poema que arranca com uma autocitação do livro Photomaton & Vox, onde é muito menos o mundo académico em si mesmo do que, sobretudo, o academismo poético (com ou sem cátedra) que é invectivado em termos como estes:

não um dr. mas mil drs. de um só reino,
e não se tem paciência para mandar tantas vezes à merda,
oh afastem de mim o reino,
[…] ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extravasa do real feito à imagem da merda

(p. 172-3.)
O «fogo» que a língua poética de Herberto Helder transporta consigo já há muito que deixou claro como não há fogo sem incêndio. É uma questão, diz o extraordinário curto poema escrito «na morte de Mário Cesariny», de «ter um inferno à mão seja qual for a língua» (p. 206). O que é ou em que se tornou a língua portuguesa, depois de por ela passar um poeta como este, é ainda cedo para dizer. Enquanto não o dizemos, o poeta encarrega-se de insinuá-lo no corpo da sua própria «súmula»: ao acrescentar-lhe agora os poemas de Os Brancos Arquipélagos, lembra-nos uma radical experiência de invenção, delírio e extravagância idiomática como bem pode ser que não se tenha vivido outra em qualquer língua do mundo.


Por Gustavo Rubim, publicado em 23.10.2008 na secção Recensões Críticas , Revista Colóquio / Letras da Fundação Calouste Gulbenkian

"A Faca Não Corta o Fogo"(cont.)



◊ a faca não corta o fogo,

não me corta o sangue escrito,

não corta a água,

e quem não queria uma língua dentro da própria língua?

eu sim queria,

jogando linho com dedos, conjugando

onde os verbos não conjugam,

no mundo há poucos fenómenos do fogo,

água há pouca,

mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,

mais brotada, inerente, incalculável,

e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,

e a abre e fecha,

é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,

porque no mundo há pouco fogo a cortar

e a água cortada é pouca,

que língua,

que húmida língua, que muda, miúda, relativa, absoluta,

e que pouca, incrível, muita,

e la poésie, c’est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,

que despropósito, que língua língua,

é do Maurice Lefèvre, e como rebenta com a boca!

queria-a toda




Herberto Helder, in " A Faca Não Corta o Fogo, súmula & inédita ", pp. 66-67, Assírio & Alvim, Lisboa, Setembro de 2008

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

POR ENTRE OS MARES DA VIDA


Por entre os mares da vida
Rios da memória inferida
Recordo os dias de Inverno
Em que líquidos eram os sonhos
Espraiando as névoas do desejo.

Imaginava o mundo em brocados
Coloridos por pincéis orvalhados
Numa litania imensa, infindável
Do presente, do futuro, do passado.

Chapinhando ermo me deleitava
Ao som das bátegas gritava
Mais alto o clamor da inocência
Transformar o frio gélido da noite
Em calor ardente, diurno, transparente.

O presente chegou, o passado esvaiu-se
E o futuro nebuloso dirimiu-se
Em histórias, peripécias, devaneios
De brocados partidos, desbotados.

No oceano de mares em fúria,
Afundei o destino da incúria
Que para nós fora marcado
Pela mão da cobiça, do apátrida,
Da assassina ganância humana.

E por ti, meu irmão desconhecido
Que me esperas já encanecido
Eis-me, aqui, do mar aportado
Fraterno e frágil, mas não derrotado!

M.J. Soares de Moura, in "Poesias do Mar e da Terra"

sábado, 24 de outubro de 2009

PALAVRAS


PALAVRAS

Golpes
De machado que fazem soar a madeira,
e os ecos!
Ecos partem
Do centro como cavalos.

A seiva
Jorra como lágrimas, como a
água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido por ervas daninhas.
Anos depois as encontro
Na estrada —

Palavras secas e sem rumo,
Infatigável bater de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço estrelas fixas
Governam uma vida.

Sylvia Plath, (1932-1963)

Palavras

Espada entre flores,
rochedo nas águas,
assim firmes, duras,
entre as coisas fluidas,
fiquem as palavras,
as vossas palavras.

Pois se por acaso
dentro dos sepulcros
acordassem as almas
e em sonhos confusos
suspirassem rumos
de histórias passadas
e houvesse um tumulto
de ânsias e de lágrimas,

- lembrassem as lágrimas
caídas no mundo
nas noites amargas
cercadas dos muros
das vossas palavras.
Todas as palavras.

Nos espelhos puros
que a memória guarda,
fique o rosto surdo,
a música brava
do humano discurso.
De qualquer discurso.

Só de morte exacta
sonharão os justos,
saudosos de nada,
isentos de tudo,
pascendo auras claras,
livres e absolutos,
nos campos de prata
dos túmulos fundos.

No meio das águas,
das pedras, das nuvens,
verão as palavras:
estrelas de chumbo,
rochedos de chumbo.
A cegueira da alma.
O peso do mundo.

Adeus, velhas falas
e antigos assuntos!

Cecília Meireles (1901-1964)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"MASS MEDIA" E BIOÉTICA: REPENSANDO A ÉTICA NA INFORMAÇÃO


No início dos anos 1960, quando o sociólogo canadiano Marshall McLuhan decretou que os meios de comunicação de massa haviam reduzido o mundo à dimensão de uma “aldeia global”, sua afirmação foi considerada revolucionária,quase profética. Na época, ainda não havia a proliferação dos canais de televisão a cabo, a informática estava apenas engatinhando e a palavra internet não existia. Entretanto, as revoluções tecnológicas das últimas quatro décadas provaram que, em parte, McLuhan estava certo: o mundo vive hoje uma comunicação planetária, exigindo dos profissionais da imprensa uma responsabilidade que vai muito além dos normativos e limitados códigos deontológicos.
Como observa Cornou, o trabalho dos jornalistas enfrenta, actualmente, muitas dificuldades porque esses profissionais estão mais sujeitos a pressões tradicionais dos poderes e do dinheiro, mas também à pressão cada vez mais constrangedora da velocidade, cuja expressão última é a informação em tempo real (CORNOU,1994).
Entretanto, o mais preocupante é que em tempos de intercâmbio planetário nos quais a informação se tornou instantânea, sendo transmitida para um número cada vez maior de pessoas, aumentou significativamente o risco do rompimento dos valores éticos que devem reger os profissionais da imprensa. Em contrapartida, ao mesmo tempo em que essas novas técnicas fortaleceram o poder da informação e a responsabilidade do jornalista perante a sociedade, aumentou seu grau de fragilidade. Hoje, esses profissionais estão mais sujeitos à vulnerabilidade do que nunca, pois precisam lidar com temas complexos e globalizados que exigem tomada de decisão reflexiva. Diante dessa realidade, é preciso questionar se os profissionais da informação estão preparados eticamente para gerar práticas jornalísticas responsáveis.(...)
Resgate Histórico e Múltiplas Abordagens
A palavra bioética foi utilizada pela primeira vez, em 1970, por Van Rensselaer Potter, que definiu bioética como uma ponte para o futuro, uma ética necessária para a reflexão sobre a vida no planeta. Essa definição, bastante abrangente, foi em 1988 baptizada pelo próprio Potter de “Bioética Global” (POTTER, 1971; POTTER, 1988).
Desde sua concepção, há três décadas, foram agregadas à bioética novas definições que a transformaram num campo de estudo interdisciplinar. A bioética é a articulação, a integração e o consenso de várias disciplinas, não só da área da saúde, mas também de outras áreas, como: antropologia, biologia, sociologia, psicologia, economia, direito, política, ecologia, filosofia, teologia etc. Envolve profissionais de saúde e todos aqueles que, com competência e responsabilidade, se dispõem a reflectir eticamente sobre a melhor conduta a ser prestada à pessoa humana (CORREIA, 1996).
Esse carácter pluralista da bioética é reforçado por outros autores ao preconizar que esse campo do saber trata da vida da natureza, da flora, da fauna e da vida humana, à luz dos valores humanos aceites numa sociedade democrática, pluralista, secular e conflitiva (PESSINI & BACHIFONTAINE,1991). Dessa forma, pode-se dizer que a bioética é uma proposta de diálogo não só na esfera individual, mas, principalmente, no campo colectivo. É acima de tudo uma área de estudo preocupada em propor uma reflexão sobre o novo e quais serão suas consequências para a humanidade.
Com base nesses conceitos, pode-se afirmar que a bioética já extrapolou a área médica e, hoje, deve ser compreendida como um campo de estudo pertinente a todos os profissionais, inclusive os jornalistas que, como intérpretes da realidade, devem estar em sintonia com os problemas contemporâneos e saber reflectir sobre eles. Para isso, a imprensa precisa ser ética, autónoma e reflexiva.
É necessário que os empresários da comunicação assumam uma posição menos mercantilista, actuando como “cães de guarda” do cidadão e não do poder estabelecido, como frequentemente vem acontecendo. Por outro lado, os profissionais da informação precisam sair de sua confortável posição de “menoridade” e fazer uso da palavra – seu instrumento de trabalho – com mais criticidade e com uma visão de mundo menos míope e mais holística. Como propõe Capra, há uma crise de percepção e os problemas da nossa época não podem ser entendidos isoladamente (CAPRA, 1996). Para o autor, são problemas sistémicos, ou seja, estão interligados e são interdependentes. Há soluções para os principais problemas, mas estas exigem mudança radical de paradigma. E esse reconhecimento ainda não atingiu as corporações, os profissionais e nem os professores das nossas maiores universidades.
Para Capra, o velho paradigma está alicerçado nos valores antropocêntricos, nos quais o ser humano é a centralidade; o novo paradigma, que ele chama de ecologia profunda, baseia-se nos valores ecocêntricos, centralizados na Terra. É uma visão de mundo que reconhece o valor inerente da vida não humana. E quando essa concepção se torna parte de nossa consciência quotidiana, surge um sistema ético radicalmente novo. Nessa linha de raciocínio, cabe discutir a responsabilidade moral dos cientistas e também dos profissionais da informação.
Em tempo de questões polémicas como clonagem humana, terapia génica, sequenciamento genético, transplantes de órgãos, pesquisa com seres humanos,aborto eugénico, transexualidade, alimentos geneticamente modificados, entre tantos outras que a tecnociência está trazendo à tona nesse início de século, os jornalistas, como transmissores de informação e formadores de opinião, não podem ficar à margem da discussão. Precisam participar dela como agentes activos, pois, caso contrário, correm o risco de pecar por omissão.
É ingénuo pensar que será possível informar correctamente o leitor sobre questões tão polémicas, usando apenas a relevante, mas insuficiente, ética do bom senso e os limitados códigos deontológicos. A reflexão sobre um conflito moral no exercício da profissão, realizada apenas sob o referencial do código deontológico, será, provavelmente, uma visão míope e muito restrita
da problemática ética nele contida (KIPPER & CLOTET, 1998). Neste sentido, a bioética tem muito a contribuir com a imprensa, pois busca no passado e no presente uma reflexão transdisciplinar que vai muito além da ética normativa. É uma ética de compreensão planetária e que resgata a visão global do homem. A imprensa, assim como a área da saúde, está vivendo um
novo paradigma frente aos avanços tecnológicos. Se no campo da medicina, a tecnologia tem interferido sensivelmente na relação médico-paciente, na comunicação não é muito diferente. Como defende Blázquez: a comunicação e a informação estão quase sempre em função da tecnologia e às custas da informação propriamente dita (BLÁZQUEZ,1994). É assim que surge o problema ético fundamental do conflito tecnologia-humanismo. As relações humanas directas são substituídas pelo meio técnico, que se torna mais importante do que a dimensão humana, deixando em segundo plano a qualidade das mensagens.
Portanto, pensar a bioética para repensar a ética na imprensa não é uma proposta fora de contexto; é uma alternativa contemporânea que propõe um novo olhar sobre a ética na informação. Mas isso exige também repensar a formação e a actuação dos profissionais da informação. É impraticável pensar que será possível abordar temas tão polémicos como descartes de embriões, eutanásia, alocação de recursos na saúde, clonagem humana ou terapêutica, terapia génica e esterilização de doentes portadores de anomalias graves, fazendo um jornalismo de reprodução de idéias ou tendo como base uma ética apenas normativa. É preciso beber em fontes mais seguras e profundas. Esse alerta deve começar nos cursos de comunicação social, que precisam de se preocupar em formar jornalistas mais preparados para o exercício da profissão num mundo globalizado e pulverizado de problemas complexos, como os citados.
Se o código de ética profissional é insuficiente para exercício pleno da profissão, é preciso buscar respaldo nos fundamentos filosóficos da ética jornalística como recomenda Bucci ao argumentar que a ética jornalística é um sistema com lógica própria (BUCCI, 2000). Não é um receituário; é antes um modo de pensar que, aplicado ao jornalismo, dá forma aos impasses que requerem decisões individuais e sugere equações para resolvê-los. O que se deve ter em conta, de início, é que a prática do jornalista não é auto-suficiente em sua dimensão ética, mas vai buscar em correntes filosóficas que trataram da ética em geral os parâmetros para enfrentar seus dilemas quotidianos. (...)

Celso Moreira de Mattos,Faculdade Metropolitana/IESB, Londrina e Faculdade Maringá, Maringá, Paraná, Brasil, in RBB vol.1, nº1
José Eduardo de Siqueira, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil, in RBB vol.1,nº1

terça-feira, 20 de outubro de 2009


IGUALDADE - "o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo."

DEMOCRACIA - "Os valores fundamentais e permanentes da democracia são a liberdade e a diversidade, entendida a primeira como princípio sobre o qual deve fundar-se a organização política da sociedade, e a segunda, como corolário que leva necessariamente ao pluralismo."

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Mário de Carvalho vence Prémio Fernando Namora


O escritor Mário de Carvalho vai receber, pela segunda vez, o Prémio Literário Fernando Namora, instituído pelo grupo Estoril Sol. Desta vez, pelo romance "A Sala Magenta".
A primeira vez foi em 1996, com a obra "Um Deus passeando pela brisa da tarde",que também recebeu o Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.
O júri, presidido por Vasco Graça Moura, salienta em acta "a elevada qualidade estilística e narrativa desta obra e a humanidade do olhar que lança sobre o universo da criação artística e da existência".

A edição de 2008 do Prémio Fernando Namora distinguiu o escritor Mário Cláudio, pelo romance "Camilo Broca".

Maria Luiza Rolim (www.expresso.pt),15/10/09

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A propósito do Acordo Ortográfico



«A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto, um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito.»
Fernando Pessoa
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«A nossa magna lingua portugueza
De nobres sons é um thesouro.»
Fernando Pessoa
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«Há acordos assináveis, sem grandes problemas e há outros que são de não assinar. O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, ..., uma simples consagração de desacordos.»
Direcção Geral do Ensino Básico e Secundário, Parecer sobre o Acordo Ortográfico, 1991
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«A língua e a linguagem são pilares do desenvolvimento no seu sentido mais amplo, não devem ser meros instrumentos do comércio e diplomacia. O acordo ortográfico de língua portuguesa de 1990 apresenta uma dubiedade sem critério, dificulta a aprendizagem da língua e empobrece o património linguístico da comunidade de países de língua portuguesa.»
Revista Autor, Junho 2008, Editorial, 1/6/2008

O que dói às aves

E chega um dia em que reconhecemos
finalmente
a injustiça das palavras -
exactamente as mesmas
para quem vai e para quem fica

um dia
em que não há mais passado para contar
nem mais futuro para viver

apenas uma velha cantiga de embalar
uma casa desaparecida
e este limbo ocasional
onde o corpo
espera que anoiteça

Alice Vieira

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A Memória e... o esquecimento


Como todas as coisas do universo, a memória sofre a degradação e a desintegração, o que para ela se chama esquecimento. Como qualquer coisa informacional, ela é submetida à doença que ataca a informação: o boato, que confunde, encobre e entorpece. A diminuição da memória é ininterrupta. A própria memória tende a tornar-se lacunar, incorrecta, enganadora. Além disso(...) sofre profundamente o efeito das forças de recalcamento, que expulsam a recordação incómoda, e das forças de transfiguração e mitologização, que legendarizam a recordação.
A perda de memória torna-nos imbecis. A imbecilidade contemporânea, isto é, própria deste tempo fixo no presente, que esquece o passado e receia o futuro é o nosso esquecimento do que caracterizou o último século(...)
Devemos lutar contra a desmemorização e contra a memória imobilizada(...) Devemos regenerar constantemente a memória . A regeneração da memória parte justamente das necessidades vivas do presente.

Edgar Morin, in " As grandes questões do nosso Tempo"

sábado, 10 de outubro de 2009

"INDIGNAÇÃO", Romance





INDIGNAÇÃO
de Philip Roth (Autor)





SINOPSE
Indignação é o vigésimo sétimo livro de Philip Roth.
Conta a história da educação do jovem Marcus Messner nas circunstâncias assustadoras e nas obstruções anómalas que a vida acarreta.

É uma história de inexperiência, loucura, resistência intelectual, descoberta sexual, coragem e erro contada com toda a energia criativa e todo o engenho de que Roth é possuidor.

É simultaneamente uma ruptura inesperada com as narrativas obsidiantes da velhice e suas experiências que são os seus livros mais recentes e um poderoso aditamento às investigações do autor sobre o impacto da história da América na vida do indivíduo vulnerável.

Editora Dom Quixote, Colecção Ficção Universal
Ano de Edição: 2009

Herta Müller, Nobel da Literatura de 2009


Herta Muller foi a galardoada deste ano com o Prémio Nobel da Literatura. Poetisa e ensaísta , Herta de origem romena, mas cidadã alemã, escreve contra o esquecimento.
O seu livro " Compromisso" identifica liminarmente essa luta exercitada ao longo da sua obra. Nele, "Herta faz uma espécie de retorno ao passado e às experiências pessoais para mostrar o mundo terrível de adversidades e humilhações que ela mesma viveu na Roménia comunista, um país tomado pelas trevas de um regime repressor, numa sociedade onde a oportunidade é limitada, a delação se tornou uma instituição extra-oficial e a confiança no próximo é uma raridade escassa tanto quanto um prato de comida decente ou um belo sapato feminino. A autora descreve uma nação habitada por cidadãos que, em boa parte, recorrem ao álcool para suportar uma rotina burocratizada, onde nada de interessante parece acontecer."
Herta Müller, nascida em 1953, está apenas editada em Portugal pela Cotovia com ”O Homem é um Grande Faisão Sobre a Terra” e pela Difel com “A Terra das Ameixas Verdes”.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Mediadora do Mutismo

Onde não começa o sopro
no côncavo da língua muda
o peso da sombra entre ruínas,
falha que nunca coincide.


Silêncio do incontível, como
recusar a veemência
desta cegueira? Antes da fuga
Das formas, no sem fundo

Inabitável. Artérias vivas,
estrelas, relâmpagos,
jorrarão da obscuridade vermelha?
E as palavras serão o espaço

Do grito,
o espaço de nada, o espaço
do espaço,
a obscura dor da terra?

António Ramos Rosa

domingo, 4 de outubro de 2009

Sobre Um Poema


Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

sábado, 3 de outubro de 2009

A vocação ostentória portuguesa permanece...


A vocação ostentória e boémia da nova classe política, militar e civil passa as raias do entendimento e só em termos freudianos pode ser compreendida. Nos tempos oficialmente económicos do mal falecido fascismo, o regime organizava em permanência sumptuosos banquetes publicitários ( centenários, congressos, celebrações de tudo, canonizações de obscuros bispos de séculos em que Portugal não existia) destinados a comprar as consciências mais delicadas da democracia ocidental. Os que assistiam a esses ágapes podiam lembrar-se deles e evocá-los com trémulos na voz passados quinze anos, e os que os davam ,convertê-los em efemérides glosadas em tom épico nas colunas do Diário de Notícias, d' O Século ou do Diário da Manhã. A eterna ingenuidade dos profissionais dela podiam imaginar que, no dia em que esse regime do privilégio insolente e do arbítrio puro desaparecesse, essa escandalosa exibição para Europa ver cederia o lugar a uma democrática, austera aplicação dos dinheiros públicos. Engano puro: ninguém ousa apresentar a conta dos inumeráveis gastos do tipo sumptuário e exibicionista que os novos ricos da política nacional acharam por bem efectuar. Se a título individual a nossa mentalidade de ricos nos obriga a contorsões caras, mas com juros à vista, a título oficial, a mesma mentalidade opera sem entraves e a responsabilidade dissolve-se ao abrigo da vaga rubrica dos "interesses superiores do Estado". A primeira República nascera austera ,como o muito democrático comportamento de Teófilo o ilustrou. A segunda, que se quer revolucionária e socialista, nasceu ávida e esbanjadora como se o famoso "tesouro" do fascismo fosse herança pessoal da nova classe dirigente e não precário e precioso bem público. A austeridade pode ser um alíbi,mas a falta dela não é prova de revolucionarismo. A demagogia política e o reflexo estrutural que nos caracteriza combinaram-se para produzir o fenómeno pasmoso de alimentarmos a máquina económica com o dinheiro dos outros , gasto alegremente como se fosse nosso. Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado banquete dos "cravas" , para o etiquetar com a vulgaridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anónima, uma maquinação de poderes obscuros, uma "pouca sorte" que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem, e sobretudo entre quem parecia lógico que o fosse. Todavia alguém terá de pagar, cedo ou tarde, o preço que a aparência exige para ter um mínimo de realidade. Esse alguém é bem conhecido: chama-se povo, o povo que efectivamente trabalha e para quem, como escrevia Goethe, a maioria das revoluções que se fazem em seu nome não significam mais que a possibilidade de mudar de ombro para suportar a costumada canga.

Eduardo Lourenço, " Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos", in " O Labirinto da Saudade", Novembro de 2000, Editor Gradiva

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Um grande desafio


"O desafio da futura bioética é que possuimos mais do que nunca conhecimento científico e capacidade tecnológica e não temos, entretanto, o menor sentido de como utilizar esse conhecimento e a tecnologia, sendo que a crise de nossa era é que adquirimos um poder inesperado e devemos usá-lo no caos de um mundo pós-tradicional, pós-cristão e pós-moderno."

H.T. Engelhardt