domingo, 6 de setembro de 2009

O NOSSO TEMPO


“Eduardo Lourenço (…) sabe que todos nós somos espíritos perdidos no tempo e que, apesar das palavras não poderem quebrar a nossa irredutível solidão, elas podem pelo menos proporcionar um pouco de conforto no vazio da infinitude”.
Pascal Avot.

O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros
(...) Há cem anos, a Europa, sob a insígnia “fim de século” teve consciência de um tempo crepuscular que, à primeira vista, apresenta analogias com a temporalidade cinzenta de hoje. Mas o sentido e o conteúdo desta “depressão” de que o chamado simbolismo foi a flor preciosa e mórbida, eram, muito diferentes. A Europa dos fins do século XIX era ainda, efectivamente, a rainha do mundo. A City impunha o seu padrão de ouro em toda a parte. Durante um século, os europeus tinham alterado, como os homens jamais o haviam feito, os nossos conhecimentos a respeito da natureza, da vida, da história.
Ao mesmo tempo tinham decidido desembaraçar-se de crenças milenares, substituindo-as por sonhos e mitos que foram os nossos durante um século. Uma grande perturbação espiritual invadiu então os espíritos, as consciências, mais delicados ou proféticos, os Gaugin, os Rimbaud, com a tentação de abordar essa Europa audaciosa e impiedosa com a sua própria herança. Pensou-se que chegara “o fim do mundo”, como um século mais tarde se falaria no “fim da história”. Erradamente, pois ao contrário do que se passa hoje, a Europa era então o sujeito de todas essas revoluções e rupturas históricas e culturais justificadas pela convicção de inventar assim um futuro com as cores europeias.
Sabemos qual foi o resultado deste inédito questionamento do passado. Ele não contribuiu pouco para lançar a Europa em aventuras de que perdeu o controle e onde correu o risco de ficar sepultada, arrastando o mundo consigo. Antecipando a catástrofe ou prolongando-a, a cultura europeia tornou-se um jogo de massacre e após o massacre, real e simbolicamente, um jogo menos inocente que o das pérolas de vidro de Herman Hesse. Atravessando o Atlântico, esse jogo dadaísta ou surrealista, seduziu uma América que nunca fez depender o seu papel no mundo do destino ou do brilho da sua cultura. A tudo acrescentou um suplemento de violência, mas também de audácia conquistadora que o seu cinema exportou para o mundo. A sedução acabava de mudar de campo. Foi assim que a cultura europeia perdeu a chave do seu niilismo ainda prometaico para se tornar numa cultura pouco a pouco fascinada por um novo niilismo, um “niilismo lúdico”, baptizado à pressa de post-modernismo, última pirueta de uma cultura que já não faz história, mas recicla a história que deixou de fazer. No contexto da cultura americana, ainda impregnada da temporalidade senão feliz pelo menos épica, na sua maneira simplista de se referir ao seu passado e à história, essa expressão de niilismo não afecta em nada o sentido conquistador próprio dos Estados Unidos. É bem diferente o que se passa com um continente que viu nascer Dante, Camões, Cervantes, Shakspeare, Pascal, Kafka ou Becket, heróis de uma cultura que revisita periodicamente o inferno da condição humana para melhor contemplar o sol e as estrelas.
É por comparação com a temporalidade inocente que supomos ser a da América, que a da Europa parece, senão infeliz, pelo menos incerta. Os europeus lembram-se com excesso que no próprio dia em que abordaram o Novo Mundo começaram a envelhecer. Foi um europeu – Vico – que imaginou o processo histórico como uma espiral feita de corsi e ricorsi, de avanços e regressos. Esta imagem quadra bastante bem com a necessidade da cultura europeia de voltar periodicamente sobre os seus passos. Semelhante reflexo era fácil quando o seu espaço-tempo simbólico se confundia com o espaço-tempo da história universal. Agora que o seu tempo específico a alcançou, essas tentações de retorno não a renovarão. A nossa cultura europeia – uma entre outras – encontra-se agora confrontada com os mesmos desafios que o conjunto da comunidade humana, mas não os pode vencer por nenhuma tentativa de regressar simbolicamente sobre si mesma como o fez no Renascimento e no Romantismo. Também não se pode contentar com o papel de consumidora ou recuperadora de culturas vindas de algures, unicamente para ter a ilusão de que conserva ainda a antiga hegemonia sobre o futuro. Tanto mais que ela guarda intacta a sua capacidade de invenção e renovação. Nem se vê quem a tenha mais, América inclusa. Como já não estamos como actores da História enquanto políticos no centro do mundo, imaginamos que como cultura fomos retirados da mesma história. Mas somos nós que nos retiramos fantasmando em excesso a sedução alheia e enegrecendo inconsideravelmente o nossos próprio rosto. Não nos espantemos que seja agora de fora que a imagem finita de nós mesmos nos seja apresentada. Olhemos para ela com a mesma audácia com que durante séculos em família, dilaceramos o rosto universal que nos supúnhamos. Assim entraremos de pé no tempo dos outros.
Eduardo Lourenço,in " O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros", 2003

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