quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Há dias







Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

Eugénio de Andrade, in "Os lugares de Lume"

domingo, 27 de setembro de 2009

Lançamento do romance "2666"de Roberto Bolãno


O Diário Digital de Sábado, 26 de Setembro, ao noticiar o Lançamento de "2666", obra-prima de Roberto Bolaño, com casa cheia referia o seguinte:
-A livraria Ler Devagar da Lx Factory, em Lisboa, encheu-se hoje para celebrar a literatura, mais precisamente a obra-prima póstuma do escritor chileno Roberto Bolaño, «2666», editada em Portugal pela Quetzal.
-A festa de lançamento do livro, considerado «o acontecimento literário do ano», começou às 23:00 de sexta-feira, com acepipes mexicanos e margaritas a animar as conversas em torno da obra de um autor que morreu precocemente em 2003, aos 50 anos, e que deixou por publicar este romance em cinco partes, cujos principais temas são a literatura, a violência e a loucura.
-Francisco José Viegas, editor da Quetzal, subiu as escadas da livraria e, de uma espécie de púlpito, deu início à sessão de apresentação de «2666», a que Bolaño dedicou os últimos cinco anos de vida e que desencadeou nos Estados Unidos e em Espanha uma «Bolañomania», de crítica e leitores.
Francisco José Viegas já tinha, anteriormente, declarado à Lusa que “2666” é “um romance grandioso, maior do que o "Ulysses" [de James Joyce], uma espécie de narrativa de Borges em ponto grande, que junta literatura e violência de uma forma inédita, ininterrupta, ultrapassando o puro fantástico da literatura latino-americana”.
Lê-lo será um desafio e uma necessária descoberta.

sábado, 26 de setembro de 2009

A violência e a Política: por uma Cultura da PAZ



Hannah Arendt marcará uma ruptura no padrão weberiano de concepção de poder como visceralmente associado à violência. Para ela, antes pelo contrário, o poder estará ligado a um padrão consensual de acção solidária e não instrumental no qual a verdade é de importância fundamental: “a persuasão e a violência, dirá, podem destruir a verdade, não substituí-la”. A questão da verdade torna-se, desta maneira, crucial para o entendimento do poder. E aqui retomamos a pergunta formulada por Arendt: será a política incompatível com a verdade ? O problema,como ela identifica , já está no mito platónico da caverna: o homem que vê a luz e vem contar a verdade é desprezado e sofre ameaças. Ora, embora a sua noção se prenda à verdade factual, Hannah Arendt também expõe os riscos permanentes para esta diante do poder que manipula e falsifica. No caso dos negócios públicos a “mentira organizada”, como chamaria, é uma arma contra a verdade. A opinião e a não verdade serão os requisitos do poder. Da primeira surge a retórica com a qual as massas são iludidas e que não se limita ao verbal , mas diz respeito ao visual, ao estético, etc.. A retórica das imagens passa a ser a retórica do ilusionismo. Dessa ilusão fazem parte tanto os iludidos quanto os enganadores .
Expressão dessa falsidade encontra-se no próprio carácter efémero das imagens o que seria “um indício expressivo do carácter mentiroso das afirmações públicas concernentes ao mundo dos factos”. Deste modo, para Arendt, a violência não é o meio específico da política, aliás ela é anti-política, no máximo um fenómeno marginal à política e não sua essência. O poder repousa sobre a reunião de homens iguais que partilham sua liberdade – esta sim, o “conteúdo e sentido original da própria coisa política”(Arendt, 1998). Apenas quando se dissocia dessa fonte original é que o poder torna-se em violência e é especialmente entre os privados desse diálogo, isolados e solitários (deracinés), sem participação na esfera pública que reside o germe das acções violentas e das resoluções totalitárias.
No caminho do predomínio do cárcere de ferro da razão instrumental avançou também a construção de uma cultura da violência, entendida como valores e mentalidades que se constroem sobre a relação dialógica não estabelecida,o encontro não realizado, o face a face interditado. O desafio, após séculos de domínio desses valores é subvertê-lo e construir uma cultura de paz.
Lembremos que a mentira é ela também uma forma de violência que subverte a verdadeira relação com o Outro, na medida que impede a palavra oriunda do livre pensar diante da realidade. ( Ricoeur, 1991)
Num mundo no qual as grandes narrativas fundadoras do comportamento humano foram eliminadas, onde o niilismo se faz acompanhar de relações pautadas na razão instrumental, a reflexão sobre não-violência em suas relações com a política é de importância máxima. O desafio é como podemos tecer relações no espaço público que ultrapassem o vazio ético no qual vivemos,para utilizar a expressão de Hans Jonas. Vazio esse que se apresenta de maneira mais contundente com a crise na figura do Estado e a deslegitimação da política mesma enquanto possibilidade de construção do bem colectivo, o que conduz à apatia entre os cidadãos e a sua substituição pela figura do consumidor.
O fenómeno é observado em todo o mundo, mas com maior incidência em alguns. Como alternativa a isso os mecanismos de acção violenta nos processos sociais e políticos tornaram-se lugar comum, banalizaram-se, passando mesmo a ser legitimados.
O que importa destacar é que no debate sobre a cultura de paz é possível,repetimos, o estabelecimento de nexos entre tradições filosóficas distintas mas que têm um eixo em comum: o deslocamento em direcção ao Outro e a percepção deste como aquele pelo qual se tem responsabilidade.

Katia Mendonça, in " Em torno do conceito de Paz", Adaptado

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A pessoa humana na filosofia boeciana e seus reflexos posteriores



Boécio, 480-524 a.c., lançou aquele que seria considerado o primeiro e clássico conceito de pessoa humana, que ele assim precisou: “persona proprie dicitur naturae rationalis individua substantia”, ou seja, propriamente, diz-se pessoa a substância individual de natureza racional. Ou, ainda, como também disse Boécio, sem lançar qualquer alteração significativa no conceito, pessoa é “rationalis naturae individua substantia incommunicabilis”, isto é, substância indivídua e incomunicável de natureza racional.
Boécio, Anício Mânlio Severino Boécio, foi um homem de cultura enciclopédica e buscou elaborar uma filosofia romanizada, tendo sido conhecido como o último filósofo romano e o primeiro escolástico. (MONDIM, 1981, p. 151-153). Conhecedor da língua grega, teria sido o último a desfrutar do contacto directo com as obras de Platão e Aristóteles, fazendo com que o conhecimento do mundo antigo chegasse aos pósteros. (HAMLYN, 2003, p. 116). Ele foi o veículo mais expressivo de transmissão da cultura greco-romano ao Ocidente até o século XII, cabendo ainda observar que sua força filosófica foi memorável e seus escritos estimados na medievalidade. (FRAILE, 1956, p. 796).
A antropologia filosófica boeciana é um dos aspectos de seu pensamento que mostra a expressividade de suas reflexões, sobretudo, na formulação daquele que se tornaria um dos conceitos paradigmáticos de pessoa humana, o qual influenciaria os debates posteriores e, além disso, se fixaria na base das discussões ético-jurídicas contemporâneas em torno desse conceito. Foi sobre esse conceito que se deflagrou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano, não obstante as diferenças individuais e grupais, de ordem biológica ou cultural. (COMPARATO, 1999, p. 19).
Essa fundamentação dos direitos humanos remete também a outra reflexão, a qual faz pensá-los como direitos essenciais para a preservação da dignidade de todo ser humano. Trata-se de um libelo contra a banalização do mal e da própria intolerância, temas que se associam à indesejada união do poder com a violência, junção esta que tem enorme capacidade instrumentalizadora e é apta a colocar em risco ou mesmo aniquilar o ser humano em sua dignidade. (ARENDT, 2001, p. 35-59). Esse poder violento não conhece limites às deformações da natureza humana e da dignidade que lhe é própria. (LAFER, 1988, p. 8).
Talvez, não seja por outra razão que, ao traçar-se as grandes etapas históricas na afirmação dos direitos humanos, haja um retorno à chamada proto-história, iniciada na baixa medievalidade, até se chegar à evolução desses direitos, após a Segunda Guerra Mundial, com as declarações todas que foram e continuam sendo firmadas, ao longo dos tempos, até aos dias actuais. (COMPARATO, 1999, p. 33-55). E, quiçá, não seja também outro o motivo pelo qual se fala de uma era dos direitos humanos, não obstante a advertência de que já não basta declará-los, sendo necessário empreender todos os esforços para torná-los efectivos. (BOBBIO, 1992, p. 24).
De qualquer modo, é preciso notar que esses chamados direitos humanos regem-se por um princípio fundamental: o da complementariedade solidária, declarado de forma solene na Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Viena (1993). Por esse princípio, firma-se a ideia crucial de que todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, cabendo aos Estados, independentemente de seus sistemas políticos, económicos e culturais, protegê-los e promovê-los a todos os seres humanos. A justificativa desse princípio está no postulado ontológico de que a essência do ser humano, em sua dignidade, é uma só, ainda que sejam múltiplas as diferenças individuais e sociais, biológicas e culturais, existentes na humanidade. Assim, ao se abordar a questão da própria democracia e da dignidade humana, a partir de uma ontologia do ser humano, vale dizer, de uma antropologia filosófica de matriz ontológica, percebe-se que esse tema comporta mesmo duplo enfoque: o histórico e o filosófico. O enfoque histórico remonta ao processo de formação do Estado de Direito, cuja origem deve ser buscada na constituição das monarquias nacionais européias, a partir do século XII. O filosófico discute a relação entre o modelo democrático e a sociedade política, interrogando-se sobre a idéia de melhor constituição. Entretanto, não se limita a isso. Ele também remete à inevitável relação entre a liberdade humana e o exercício do poder, tendo-se como referenciais os chamados direitos humanos e aquele pressuposto antropológico-filosófico que lhes dá sustentação: a dignidade da pessoa humana, como ser livre e racional, dotado de corpo, alma e espírito. (VAZ, 2002, p. 353-366).

Marcius Nadur,in "O SER HUMANO E SUA SINGULARIDADE COMO PESSOA"

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

AURORA BOREAL











Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.

Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.



António Gedeão
Obra Poética
Edições João Sá da Costa
2001

domingo, 20 de setembro de 2009

Ler




“Todo o leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo.
A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que , sem ela, não teria certamente visto em si mesmo.”

Marcel Proust

“… É o leitor que confere a um objecto , lugar ou acontecimento
uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o
leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e
depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo e à nossa volta
para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender.
(…) Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. ”

Manguel, A., in “ Uma história da leitura”

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ANTERO DE QUENTAL, " As causas da decadência dos povos peninsulares"

Nas palavras de Eduardo Lourenço: "Ninguém entre nós pôs mais paixão no propósito de decifrar e ao mesmo tempo emendar o destino português do que Antero”
O período mais estimulante da vida pública de Antero de Quental foi o que culminou com a organização, junto com Batalha Reis, das Conferências do Casino, que se inauguraram em 22-V-1871, no Casino Lisbonense. A sua finalidade era a reflexão sobre as condições políticas, religiosas e económicas da sociedade portuguesa no contexto europeu, porque "não podia viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo", lia-se no programa, redigido por Antero. A mais célebre das conferências é a sua: “Causas da decadência dos povos peninsulares”, que foi imediatamente impressa e se tornou no seu mais conhecido texto em prosa. Para ele, a decadência das nações peninsulares, tão prósperas nos séculos XV e XVI, era devida a três causas de diversa natureza: moral, política e económica. A primeira tinha a ver com a transformação pós-Concílio de Trento do Cristianismo, "que é sobretudo um sentimento", no Catolicismo, "que é principalmente uma instituição". Um vive da fé, o outro do dogmatismo e da disciplina cega, que levou à Inquisição. A segunda, atribuiu-a ao Absolutismo, tão nefasto para a vida política e social como o Catolicismo para a Igreja. A terceira causa (sem discutir o carácter heróico das Descobertas) tinha a ver com as conquistas longínquas que levaram à decadência económica da Metrópole, com largas camadas da população a abandonar os campos com o olho nas riquezas da Índia: "Somos uma raça decaída por termos rejeitado o espírito moderno; regenerar-nos-emos abraçando francamente este espírito. O seu nome é Revolução [...] Se o Cristianismo foi a revolução do mundo antigo, a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno". Nunca em Portugal se fora tão longe na denúncia das consequências do poder temporal da Igreja, e por isso as conferências acabaram por ser proibidas através de portaria real contra a qual redigiram o seguinte protesto:

Protesto
Contra o Encerramento da Sala das Conferências Democráticas
Em nome da liberdade de pensamento, da liberdade de palavra, da liberdade de reunião, bases de todo o direito público, únicas garantias da justiça social, protestamos, ainda mais contristados que indignados, contra a portaria que mandou arbitrariamente fechar a sala das conferências democráticas. Apelamos para a opinião pública, para a consciência liberal do país, reservando-nos a plena liberdade de respondermos a este acto de brutal violência como nos mandar a nossa consciência e de cidadãos.
Lisboa, 26 de Junho de 1871 Antero de Quental, Adolfo Coelho, Jaime Batalha Reis, Salomão Saragga, Eça de Queirós

Da agitação que se seguiu a este atentado às liberdades, consagradas mas não respeitadas, resultou a queda do governo que as suprimira.
Ana Martins, in " Quental "

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O HORIZONTE DAS PALAVRAS






Sem direcção, sem caminho

escrevo esta página que não tem alma dentro.

Se conseguir chegar à substância de um muro

acenderei a lâmpada de pedra na montanha.

E sem apoio penetro nos interstícios fugidios

ou enuncio as simples reiterações da terra,

as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.

Tentarei construir a consistência num adágio

de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.

E na substância entra a mão, o balbucio branco

de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,

um organismo verde aberto sobre o mar,

as teclas do verão, as indústrias da água.

Eu sou agora o que a linguagem mostra

nas suas verdes estratégias, nas suas pontes

de música visual: o equilíbrio preenche os buracos

com arcos, colinas e com árvores.

Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.

O impronunciável é o horizonte do que é dito.



António Ramos Rosa, in " ACORDES ", QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 81

A MATÉRIA DAS PALAVRAS






Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma
perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.



Ana Hatherly , in "O Pavão Negro"
Assírio & Alvim
2003

CARTAS A UM JOVEM FILÓSOFO


“Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem”
Agostinho da Silva, in "Cartas a um jovem filósofo"

sábado, 12 de setembro de 2009

Estão podres as palavras









Estão podres as palavras - de passarem
por sórdidas mentiras de canalhas
que as usam ao revés como o carácter deles.
E podres de sonâmbulos os povos
ante a maldade à solta de que vivem
a paz quotidiana da injustiça.
Usá-las puras - como serão puras,
se caem no silêncio em que os mais puros
não sabem já onde a limpeza acaba
e a corrupção começa? Como serão puras
se logo a infâmia as cobre de seu cuspo?
Estão podres: e com elas apodrece a mundo
e se dissolve em lama a criação do homem
que só persiste em todos livremente
onde as palavras fiquem como torres
erguidas sexo de homens entre o céu e a terra.

Jorge de Sena

JORGE DE SENA


Filho tardio e único de Augusto Raposo de Sena, natural dos Açores e comandante da marinha mercante, e de Maria da Luz Grilo de Sena, natural da Covilhã e doméstica. Segundo testemunho do próprio escritor, tanto a família paterna como a materna pertenciam à alta burguesia, tendo a paterna mostrado sempre «presunções de aristocracia velha e predominância de militares, altos funcionários, etc.», ao passo que «a materna era sobretudo de poderosos comerciantes portuenses.»

Jorge de Sena teve uma infância retirada e infeliz, tendo feito a instrução primária e os primeiros anos do liceu no antigo Colégio Vasco da Gama, hoje desaparecido e substituído, no mesmo local, por um colégio de freiras. O restante do curso liceal fê-lo no Liceu Camões, onde foi, no sexto e sétimo ano de Ciências, aluno, em Físico-Químicas, de Rómulo de Carvalho que, sob o pseudónimo literário de António Gedeão, viria a notabilizar-se como poeta. Na Faculdade de Ciências de Lisboa efectua os estudos preparatórios para entrada na Escola Naval, com altíssimas classificações, sendo a ela admitido em 1937, portanto com 17 anos feitos, como nº. 1 do seu curso. Após uma «viagem de instrução» no navio-escola Sagres, é-lhe recusado o acesso a Oficial de Marinha, por falta de perfil necessário. Dessa ferida jamais se curará, visto o mar e o que este supõe de «andanças» ter-lhe sempre sido uma profunda atracção. Tendo que escolher entre as opções que os preconceitos burgueses da família consideravam aceitáveis, Jorge de Sena optou pela engenharia civil, que foi concluir ao Porto, com a generosa ajuda financeira de dois amigos que para sempre lhe ficaram fiéis: Ruy Cinatti e José Blanc de Portugal (ambos, também significativamente, de formação científica). Conclui o curso em 1944, mas, antes, publicara já poemas nos Cadernos de Poesia (revista que, posteriormente, co-dirigirá) e, em 1942, dera à luz o seu primeiro livro de poesia, Perseguição, que passou quase despercebido. Como já foi dito, a poesia de Sena chocava menos pelo que era do que por aquilo que não era: não era um lirismo ortodoxo, não era de fácil leitura, não era prolixa; mas era, em contrapartida, densa, concisa, difícil, pouco musical, onírica, agreste, inteligente e culta. Com vivências do surrealismo mas em muito o transcendendo.

Em 1947 inicia a sua carreira profissional como engenheiro civil (na Câmara Municipal de Lisboa, na Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização e na Junta Autónoma de Estradas). Tendo casado com Mécia de Freitas Leça, em 1949, depressa teve que juntar, às tarefas inerentes à profissão, as de tradutor, director-literário e revisor, o que impediu que se entregasse de modo mais profundo à obra de criação e investigação para que se sentia vocacionado e interiormente equipado. Isto e o ter participado num golpe revolucionário abortado que poderia vir a ter, eventualmente, consequências, levou-o a fixar-se, em 1959, no Brasil, primeiro, como catedrático contratado de Teoria da Literatura, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Assis, no Estado de São Paulo, depois, em 1961, como catedrático contratado de Literatura Portuguesa, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, cargo que desempenhou até 1965, ano em que a situação política no Brasil o leva a mudar-se para os Estados Unidos. No Brasil defendera, entretanto, tese de doutoramento em Letras e de livre-docência em Literatura Portuguesa, com o trabalho Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista peninsular, e adquirira a cidadania brasileira, que conservaria até morrer.

Nos Estados Unidos, Sena começou por aceitar o cargo de «visiting professor» na Universidade de Wisconsin, sendo, em 1967 nomeado catedrático do Departamento de Espanhol e Português. Em 1970 mudou-se para Santa Barbara, onde foi nomeado catedrático efectivo do Departamento de Espanhol e Português e, por acumulação, director do Departamento de Literatura Comparada. Aí viria a falecer em 4 de Junho de 1978.

A obra de Jorge de Sena é monumental em volume, em variedade (poesia, ficção, teatro, crítica, ensaio, história, história literária, organização de antologias, tradução) e, frequentemente, de qualidade excepcional. Dando razão, em todos os pelouros, ao mot de Flaubert: «La poésie n'est point une débilité de l'esprit», Jorge de Sena imprimiu a tudo o que escreveu um vigor, uma ironia corrosiva, uma energia ácida, um ousar quase, por vezes, à beira da loucura, um gosto (e uma capacidade) de subversão, um poder intelectual e espiritual, um apetite omnívoro de outras e diversas fontes culturais capazes de o alimentarem e excitarem, que dão ao corpus da sua obra uma força e uma monumentalidade quase monstruosas. Na ficção, citaríamos tudo: três colectâneas de contos, Andanças do Demónio (1960), Novas Andanças do Demónio (1966); Os Grão-Capitães (1976); uma novela, O Físico Prodigioso (1977) e um romance, fortemente autobiográfico, Sinais de Fogo (1979). Na poesia muitos dos poemas de As Evidências (1955), Fidelidade (1958), Metamorfoses (1963), Peregrinatio ad Loca Infecta (1969) e Exorcismos (1972) ficarão, por certo, a fazer parte do nosso património poético.

António Ramos Rosa, Eduardo Lourenço e Eugénio Lisboa e contam-se entre os ensaístas que mais atentamente se dedicaram ao estudo e análise da obra de Jorge Sena.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

LE CLEZIO - "A Música da Fome "


" A Música da Fome "
Tipo : Romance
Autor: J.M.G. Le Clézio
Título original: Ritournelle de la Faim
Tradutor: Isabel St. Aubyn
Editora: Dom Quixote
N.º de páginas: 188
ISBN: 978-972-20-3825-6
Ano de publicação: 2009

Publicado pela Gallimard em Outubro de 2008, poucos dias antes da atribuição do Prémio Nobel de Literatura ao seu autor, este romance de J.M.G. Le Clézio vem de certa forma validar, se necessário fosse, a escolha da Academia Sueca. É um livro sólido, de escrita impecável, sem empertigamentos, sem pirotecnias, uma obra serena, com a textura e o ritmo certo dos clássicos. Um exemplo perfeito do que esperamos de um grande escritor no auge da sua carreira, quando já não precisa de provar nada a ninguém.
Para a personagem central, Ethel Brun, Le Clézio inspirou-se na sua própria mãe – «uma jovem que, involuntariamente, foi uma heroína aos vinte anos» – mas os traços autobiográficos da narrativa são ténues. Mais do que a história da sua família, originária da Ilha Maurícia como os Brun, o que o autor pretende recuperar são as marcas (palavras soltas, atmosferas, angústias difusas) de um tempo a cujo estertor ainda assistiu em criança. A ruína familiar é aqui metáfora da ruína da História, das feridas da guerra e de uma fome que foi literal, antes de ser simbólica: «Esta fome está dentro de mim. (…) Contém uma luz intensa que me impede de esquecer a infância. Sem ela, não teria com certeza conservado a memória desses tempos, desses anos tão longos, em que nos faltava tudo.»
A penúria absoluta é o que Ethel e os pais encontram, quase no fim do romance, em Nice (a «cidade de opereta» em que Le Clézio nasceu, em Abril de 1940). Mas antes disso há o relato minucioso da «queda» dos Brun, uma derrocada lenta que começa ainda nos tempos áureos da «amnésia tranquila e sem consequências», ao som das colheres minúsculas a tinir nas chávenas de porcelana, em tertúlias de domingo nas quais o nome de Hitler começava a ser soletrado, espalhando «uma espécie de veneno», capaz de corroer «tudo em volta, os rostos, os corações, e mesmo o papel pintado do apartamento» burguês da rue du Contentin.
Ethel cresceu numa redoma, algo distante dos progenitores (consumidos por atritos conjugais) mas pertíssimo dos seus focos afectivos: o tio-avô Soliman, antigo médico militar em África, que sonhava reconstruir para si o pavilhão que a Índia Francesa levou à Exposição Colonial de 1931; a amiga Xénia Chavirov, exilada após a revolução bolchevique, rapariga extrovertida que no cinzento de Paris «era uma mancha loura, um clarão»; e Laurent Feld, um inglês ruivo, honesto, que virá a ser o seu primeiro amor, a principal esperança, o futuro marido.
A morte de Soliman desencadeia a «engrenagem» da desgraça, que a inépcia do pai para os negócios apenas acentua e acelera. Enquanto o anti-semitismo cresce nas ruas, a família afunda-se. E será Ethel, obrigada a sair, à força, da infância que não chegou a viver para a dureza da idade adulta, quem levará a bom porto a «jangada de náufragos» familiar, que o «vento da realidade» empurrou para o «vazio vertiginoso da derrota».
Embora não seja discernível uma estrutura musical evidente, há linhas melódicas que se propagam através do livro, com uma certa cadência, uma certa entoação, repetindo-se aqui e ali como um retornelo (não por acaso, o título original é Ritournelle de la Faim). Também não por acaso, o único momento histórico em que Ethel e a verdadeira mãe do autor coincidem é a estreia do Bolero de Ravel. Essa peça que parece «uma profecia» e leva os instrumentos até aos seus limites, «até à estrangulação, até quebrarem as cordas e as vozes, até quebrarem o egoísta silêncio do mundo». O mesmo efeito que Le Clézio, com menos violência e menos estrépito, acaba por conseguir neste romance belíssimo, melancólico mas nunca resignado.

Avaliação: 9/10

[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]

terça-feira, 8 de setembro de 2009

A VERSATILIDADE DO TEMPO









O tempo é muito lento para os que esperam
Muito rápido para os que tem medo
Muito longo para os que lamentam
Muito curto para os que festejam
Mas, para os que amam, o tempo é eterno.

William Shakespeare

O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel.

Platão

Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa.

Fernando Pessoa

Feliz aquele que reconhece a tempo que os seus desejos não estão de acordo com as suas faculdades.

Johann Goethe

domingo, 6 de setembro de 2009

O NOSSO TEMPO


“Eduardo Lourenço (…) sabe que todos nós somos espíritos perdidos no tempo e que, apesar das palavras não poderem quebrar a nossa irredutível solidão, elas podem pelo menos proporcionar um pouco de conforto no vazio da infinitude”.
Pascal Avot.

O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros
(...) Há cem anos, a Europa, sob a insígnia “fim de século” teve consciência de um tempo crepuscular que, à primeira vista, apresenta analogias com a temporalidade cinzenta de hoje. Mas o sentido e o conteúdo desta “depressão” de que o chamado simbolismo foi a flor preciosa e mórbida, eram, muito diferentes. A Europa dos fins do século XIX era ainda, efectivamente, a rainha do mundo. A City impunha o seu padrão de ouro em toda a parte. Durante um século, os europeus tinham alterado, como os homens jamais o haviam feito, os nossos conhecimentos a respeito da natureza, da vida, da história.
Ao mesmo tempo tinham decidido desembaraçar-se de crenças milenares, substituindo-as por sonhos e mitos que foram os nossos durante um século. Uma grande perturbação espiritual invadiu então os espíritos, as consciências, mais delicados ou proféticos, os Gaugin, os Rimbaud, com a tentação de abordar essa Europa audaciosa e impiedosa com a sua própria herança. Pensou-se que chegara “o fim do mundo”, como um século mais tarde se falaria no “fim da história”. Erradamente, pois ao contrário do que se passa hoje, a Europa era então o sujeito de todas essas revoluções e rupturas históricas e culturais justificadas pela convicção de inventar assim um futuro com as cores europeias.
Sabemos qual foi o resultado deste inédito questionamento do passado. Ele não contribuiu pouco para lançar a Europa em aventuras de que perdeu o controle e onde correu o risco de ficar sepultada, arrastando o mundo consigo. Antecipando a catástrofe ou prolongando-a, a cultura europeia tornou-se um jogo de massacre e após o massacre, real e simbolicamente, um jogo menos inocente que o das pérolas de vidro de Herman Hesse. Atravessando o Atlântico, esse jogo dadaísta ou surrealista, seduziu uma América que nunca fez depender o seu papel no mundo do destino ou do brilho da sua cultura. A tudo acrescentou um suplemento de violência, mas também de audácia conquistadora que o seu cinema exportou para o mundo. A sedução acabava de mudar de campo. Foi assim que a cultura europeia perdeu a chave do seu niilismo ainda prometaico para se tornar numa cultura pouco a pouco fascinada por um novo niilismo, um “niilismo lúdico”, baptizado à pressa de post-modernismo, última pirueta de uma cultura que já não faz história, mas recicla a história que deixou de fazer. No contexto da cultura americana, ainda impregnada da temporalidade senão feliz pelo menos épica, na sua maneira simplista de se referir ao seu passado e à história, essa expressão de niilismo não afecta em nada o sentido conquistador próprio dos Estados Unidos. É bem diferente o que se passa com um continente que viu nascer Dante, Camões, Cervantes, Shakspeare, Pascal, Kafka ou Becket, heróis de uma cultura que revisita periodicamente o inferno da condição humana para melhor contemplar o sol e as estrelas.
É por comparação com a temporalidade inocente que supomos ser a da América, que a da Europa parece, senão infeliz, pelo menos incerta. Os europeus lembram-se com excesso que no próprio dia em que abordaram o Novo Mundo começaram a envelhecer. Foi um europeu – Vico – que imaginou o processo histórico como uma espiral feita de corsi e ricorsi, de avanços e regressos. Esta imagem quadra bastante bem com a necessidade da cultura europeia de voltar periodicamente sobre os seus passos. Semelhante reflexo era fácil quando o seu espaço-tempo simbólico se confundia com o espaço-tempo da história universal. Agora que o seu tempo específico a alcançou, essas tentações de retorno não a renovarão. A nossa cultura europeia – uma entre outras – encontra-se agora confrontada com os mesmos desafios que o conjunto da comunidade humana, mas não os pode vencer por nenhuma tentativa de regressar simbolicamente sobre si mesma como o fez no Renascimento e no Romantismo. Também não se pode contentar com o papel de consumidora ou recuperadora de culturas vindas de algures, unicamente para ter a ilusão de que conserva ainda a antiga hegemonia sobre o futuro. Tanto mais que ela guarda intacta a sua capacidade de invenção e renovação. Nem se vê quem a tenha mais, América inclusa. Como já não estamos como actores da História enquanto políticos no centro do mundo, imaginamos que como cultura fomos retirados da mesma história. Mas somos nós que nos retiramos fantasmando em excesso a sedução alheia e enegrecendo inconsideravelmente o nossos próprio rosto. Não nos espantemos que seja agora de fora que a imagem finita de nós mesmos nos seja apresentada. Olhemos para ela com a mesma audácia com que durante séculos em família, dilaceramos o rosto universal que nos supúnhamos. Assim entraremos de pé no tempo dos outros.
Eduardo Lourenço,in " O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros", 2003

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

COM FÚRIA E RAIVA









Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs a sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “ O Nome das Coisas ”, 1977

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS

Prefácio
Em Outubro de 2005, a Conferência Geral da UNESCO adoptou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Pela primeira vez na história da bioética, os Estados-membros comprometeram-se, e à comunidade internacional, a respeitar e aplicar os princípios fundamentais da bioética condensados num texto único.
Ao tratar das questões éticas suscitadas pela medicina, ciências da vida e
tecnologias associadas na sua aplicação aos seres humanos, a Declaração, tal como o seu título indica, incorpora os princípios que enuncia nas regras que norteiam o respeito pela dignidade humana, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ao consagrar a bioética entre os direitos humanos internacionais e ao garantir o respeito pela vida dos seres humanos, a Declaração reconhece a interligação que existe entre ética e direitos humanos no domínio específico da bioética.
Conjuntamente com a Declaração, a Conferência Geral da UNESCO adoptou uma resolução em que apela a todos os Estados-membros para que desenvolvam todos os esforços no sentido da efectiva aplicação dos princípios enunciados na Declaração e me convida a tomar as medidas apropriadas para assegurar o acompanhamento da declaração, incluindo a sua divulgação tão ampla quanto possível.
A presente brochura constitui um primeiro instrumento de divulgação da
Declaração e pretende dar um contributo significativo para o conhecimento da
Declaração à escala mundial e para a compreensão dos princípios nela
enunciados, de modo a que os seres humanos, estejam onde estiverem, possam
beneficiar dos avanços científicos e tecnológicos, no quadro do respeito pelos
direitos humanos e liberdades fundamentais.
Koïchiro Matsuura
DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS
A Conferência Geral
Consciente da capacidade única dos seres humanos de reflectir sobre a
sua existência e o seu meio ambiente, identificar a injustiça, evitar o perigo,
assumir responsabilidades, procurar cooperação e dar mostras de um sentido
moral que dá expressão a princípios éticos,
Considerando os rápidos progressos da ciência e da tecnologia, que cada vez
mais influenciam a nossa concepção da vida e a própria vida, de que resulta uma forte procura de resposta universal para as suas implicações éticas,
Reconhecendo que as questões éticas suscitadas pelos rápidos progressos da
ciência e suas aplicações tecnológicas devem ser examinadas tendo o devido
respeito pela dignidade da pessoa humana e o respeito universal e efectivo dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais,
Convicta de que é necessário e oportuno que a comunidade internacional
enuncie princípios universais com base nos quais a humanidade possa responder aos dilemas e controvérsias, cada vez mais numerosos, que a ciência e a tecnologia suscitam para a humanidade e para o meio ambiente,
Recordando a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os DireitosHumanos adoptada pela Conferência Geral da UNESCO em 11 de Novembro de 1997 e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanosadoptada pela Conferência Geral da UNESCO em 16 de Outubro de 2003,(...)
Tendo igualmente presentes os instrumentos internacionais e regionais no domínio da bioética, nomeadamente a Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano no que toca à Aplicação da Biologia e da Medicina, a Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina do Conselho da Europa, adoptada em 1997 e em vigor desde 1999, com os seus Protocolos adicionais, e bem assim as legislações e regulamentações nacionais no domínio da bioética e os códigos de conduta, princípios orientadores e outros textos internacionais e regionais no domínio da bioética, tais como a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial sobre os Princípios Éticos Aplicáveis às Investigações Médicas sobre Sujeitos Humanos, adoptada em 1964 e emendada em 1975, 1983, 1989, 1996 e 2000, e os Princípios Orientadores Internacionais de Ética da Investigação Biomédica sobre Sujeitos Humanos adoptados pelo Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas em 1982 e emendados em 1993 e 2002,
Reconhecendo que a presente Declaração deve ser entendida de uma forma compatível com o direito nacional e internacional em conformidade com o direito relativo aos direitos humanos,
Recordando o Acto Constitutivo da UNESCO, adoptado em 16 de Novembro
de 1945,
Considerando que a UNESCO tem um papel a desempenhar na promoção de princípios universais assentes em valores éticos comuns que orientem o desenvolvimento científico e tecnológico e bem assim as transformações sociais,com vista a identificar os desafios que se levantam no domínio da ciência e da tecnologia tendo em conta a responsabilidade das gerações presentes para com as gerações futuras, e que é necessário tratar as questões de bioética, que têm necessariamente uma dimensão internacional, no seu conjunto, aplicando os princípios já enunciados na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, e tendo em consideração não apenas o contexto científico actual mas também as perspectivas futuras,
Consciente de que os seres humanos fazem parte integrante da biosfera e têm um papel importante a desempenhar protegendo-se uns aos outros e protegendo as outras formas de vida, em particular os animais,
Reconhecendo que, baseados na liberdade da ciência e da investigação,
os progressos da ciência e da tecnologia estiveram, e podem estar, na origem de
grandes benefícios para a humanidade, nomeadamente aumentando a esperança de vida e melhorando a qualidade de vida, e sublinhando que estes progressos deverão sempre procurar promover o bem-estar dos indivíduos, das famílias, dos grupos e das comunidades e da humanidade em geral,no reconhecimento da dignidade da pessoa humana e no respeito universal e efectivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,
Reconhecendo que a saúde não depende apenas dos progressos da investigação científica e tecnológica, mas também de factores psicossociais e culturais,
Reconhecendo também que as decisões relativas às questões éticas suscitadas
pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas podem ter repercussões sobre os indivíduos, as famílias, os grupos ou comunidades e sobre a humanidade em geral,
Tendo presente que a diversidade cultural, fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, é necessária à humanidade e, neste sentido, constitui património comum da humanidade, mas sublinhando que ela não pode ser invocada em detrimento dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,
Tendo igualmente presente que a identidade da pessoa tem dimensões biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais,
Reconhecendo que comportamentos científicos e tecnológicos contrários à ética têm repercussões particulares nas comunidades autóctones e locais,
Convicta de que a sensibilidade moral e a reflexão ética devem fazer parte integrante do processo de desenvolvimento científico e tecnológico e de que
a bioética deve ter um papel fundamental nas escolhas que é necessário fazer, face aos problemas suscitados pelo referido desenvolvimento,
Considerando que é desejável desenvolver novas formas de responsabilidade social que assegurem que o progresso científico e tecnológico contribui para a justiça, a equidade e o interesse da humanidade,
Reconhecendo que um meio importante de avaliar as realidades sociais e alcançar a equidade é prestar atenção à situação das mulheres,
Sublinhando a necessidade de reforçar a cooperação internacional no domínio da bioética, tendo particularmente em conta as necessidades específicas dos países em desenvolvimento, das comunidades autóctones e das populações vulneráveis,
Considerando que todos os seres humanos, sem distinção, devem beneficiar das mesmas elevadas normas éticas no domínio da medicina e da investigação em ciências da vida,
Proclama os princípios que se seguem e adopta a presente Declaração.
* Adoptada por aclamação no dia 19 de Outubro de 2005
Disposições Gerais
Artigo 1º Âmbito
1. A presente Declaração trata das questões de ética suscitadas pela medicina,
pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas, aplicadas
aos seres humanos, tendo em conta as suas dimensões social, jurídica e ambiental.
2. A presente Declaração é dirigida aos Estados. Permite também, na medida apropriada e pertinente, orientar as decisões ou práticas de indivíduos, grupos,
comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas.
Artigo 2º Objectivos
A presente Declaração tem os seguintes objectivos:
(a) proporcionar um enquadramento universal de princípios e procedimentos
que orientem os Estados na formulação da sua legislação, das suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética;
(b) orientar as acções de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas;
(c) contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos;
(d) reconhecer a importância da liberdade de investigação científica e dos benefícios decorrentes dos progressos da ciência e da tecnologia, salientando ao mesmo tempo a necessidade de que essa investigação e os consequentes progressos se insiram no quadro dos princípios éticos enunciados na presente Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais;
(e) fomentar um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as questões da bioética entre todas as partes interessadas e no seio da sociedade em geral;
(f) promover um acesso equitativo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia, bem como a mais ampla circulação possível e uma partilha rápida dos conhecimentos relativos a tais progressos e o acesso partilhado aos benefícios deles decorrentes, prestando uma atenção particular às necessidades dos países em desenvolvimento;
(g) salvaguardar e defender os interesses das gerações presentes e futuras;
(h) sublinhar a importância da biodiversidade e da sua preservação enquanto preocupação comum à humanidade.
Princípios
Dentro do campo de aplicação da presente Declaração, os princípios que se seguem devem ser respeitados por aqueles a que ela se dirige, nas decisões que tomem ou nas práticas que adoptem.
Artigo 3º Dignidade humana e direitos humanos1.
A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser plenamente respeitados.
2. Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem prevalecer sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade.
Artigo 4º Efeitos benéficos e efeitos nocivos
Na aplicação e no avanço dos conhecimentos científicos, da prática médica e das tecnologias que lhes estão associadas, devem ser maximizados os efeitos benéficos directos e indirectos para os doentes, os participantes em investigações e os outros indivíduos envolvidos, e deve ser minimizado qualquer efeito nocivo susceptível de afectar esses indivíduos.la 33ª sessão da Conferência Geral da UNESCO
Artigo 5º Autonomia e responsabilidade individual
A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.
Artigo 6º Consentimento
1. Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado,o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.
2. Só devem ser realizadas pesquisas científicas com o consentimento prévio,livre e esclarecido da pessoa em causa. A informação deve ser suficiente, fornecida em moldes compreensíveis e incluir as modalidades de retirada do consentimento. A pessoa em causa pode retirar o seu consentimento a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo. Excepções a este princípio só devem ser feitas de acordo com as normas éticas e jurídicas adoptadas pelos Estados e devem ser compatíveis com os princípios e disposições enunciados na presente Declaração, nomeadamente no artigo 27ª, e com o direito internacional relativo aos direitos humanos.
3. Nos casos relativos a investigações realizadas sobre um grupo de pessoas
ou uma comunidade, pode também ser necessário solicitar o acordo dos representantes legais do grupo ou da comunidade em causa. Em nenhum caso deve o acordo colectivo ou o consentimento de um dirigente da comunidade ou de qualquer outra autoridade substituir-se ao consentimento esclarecido do indivíduo.
Artigo 7º Pessoas incapazes de exprimir o seu consentimento
Em conformidade com o direito interno, deve ser concedida protecção especial às pessoas que são incapazes de exprimir o seu consentimento:
(a) a autorização para uma investigação ou uma prática médica deve ser obtida em conformidade com o superior interesse da pessoa em causa e com o direito interno. No entanto, a pessoa em causa deve participar o mais possível no processo de decisão conducente ao consentimento e no conducente à sua retirada;
(b) a investigação só deve ser realizada tendo em vista o benefício directo da
saúde da pessoa em causa, sob reserva das autorizações e das medidas de protecção prescritas pela lei e se não houver outra opção de investigação de eficácia comparável com participantes capazes de exprimir o seu consentimento. Uma investigação que não permita antever um benefício directo para a saúde só deve ser realizada a título excepcional, com a máxima contenção e com a preocupação de expor a pessoa ao mínimo possível de riscos e incómodos e desde que a referida investigação seja efectuada no interesse da saúde de outras pessoas pertencentes à mesma categoria, e sob reserva de ser feita nas condições previstas pela lei e ser compatível com a protecção dos direitos individuais da pessoa em causa. Deve ser respeitada a recusa destas pessoas em participar na investigação.
Artigo 8º Respeito pela vulnerabilidade humana e integridade pessoal
Na aplicação e no avanço dos conhecimentos científicos, da prática médica e das tecnologias que lhes estão associadas,deve ser tomada em consideração a vulnerabilidade humana. Os indivíduos e grupos particularmente vulneráveis devem ser protegidos, e deve ser respeitada a integridade pessoal dos indivíduos em causa.
Artigo 9º Vida privada e confidencialidade
A vida privada das pessoas em causa e a confidencialidade das informações que lhes dizem pessoalmente respeito devem ser respeitadas. Tanto quanto possível, tais informações não devem ser utilizadas ou difundidas para outros fins que não aqueles para que foram coligidos ou consentidos, e devem estar em conformidade com o direito internacional, e nomeadamente com o direito internacional relativo aos direitos humanos.
Artigo 10º Igualdade, justiça e equidade
A igualdade fundamental de todos os seres humanos em dignidade e em direitos
deve ser respeitada para que eles sejam tratados de forma justa e equitativa.
Artigo 11º Não discriminação e não estigmatização
Nenhum indivíduo ou grupo deve, em circunstância alguma, ser submetido, em violação da dignidade humana, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, a uma discriminação ou a uma estigmatização.
Artigo 12º Respeito pela diversidade cultural e do pluralismo
Deve ser tomada em devida conta a importância da diversidade cultural e do
pluralismo. Porém, não devem ser invocadas tais considerações para com isso infringir a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais ou
os princípios enunciados na presente Declaração, nem para limitar o seu alcance.
Artigo 13º Solidariedade e cooperação
A solidariedade entre os seres humanos e a cooperação internacional nesse sentido devem ser incentivadas.
Artigo 14º Responsabilidade social e saúde1.
A promoção da saúde e do desenvolvimento social em benefício dos respectivos povos é um objectivo fundamental dos governos que envolve todos os sectores da sociedade.
2. Atendendo a que gozar da melhor saúde que se possa alcançar constitui um dos direitos fundamentais de qualquer ser humano, sem distinção de raça,religião, opções políticas e condição económica ou social, o progresso da ciência e da tecnologia deve fomentar:
(a) o acesso a cuidados de saúde de qualidade e aos medicamentos essenciais, nomeadamente no interesse da saúde das mulheres e das crianças, porque a saúde é essencial à própria vida e deve ser considerada um bem social e humano;
(b) o acesso a alimentação e água adequadas;
(c) a melhoria das condições de vida e do meio ambiente;
(d) a eliminação da marginalização e da exclusão, seja qual for o motivo em que se baseiam;
(e) a redução da pobreza e do analfabetismo.
Artigo 15º Partilha dos benefícios
1. Os benefícios resultantes de qualquer investigação científica e das suas aplicações devem ser partilhados com a sociedade no seu todo e no seio da comunidade internacional, em particular com os países em desenvolvimento.
Com vista a dar efectivação a este princípio, os benefícios podem assumir uma das
seguintes formas:
(a) assistência especial e sustentável às pessoas e aos grupos que participaram
na investigação e expressão de reconhecimento aos mesmos;
(b) acesso a cuidados de saúde de qualidade;
(c) fornecimento de novos produtos e meios terapêuticos ou diagnósticos, resultantes da investigação;
(d) apoio aos serviços de saúde;
(e) acesso ao conhecimento científico e tecnológico;
(f) instalações e serviços destinados a reforçar as capacidades de investigação;
(g) outras formas de benefícios compatíveis com os princípios enunciados na presente Declaração.
2. Os benefícios não devem constituir incitamentos indevidos à participação na
investigação.
Artigo 16º Protecção das gerações futuras
As repercussões das ciências da vida sobre as gerações futuras, nomeadamente
sobre a sua constituição genética, devem ser adequadamente tomadas em consideração.
Artigo 17ºProtecção do meio ambiente,da biosfera e da biodiversidade
Importa tomar na devida conta a interacção entre os seres humanos e as outras formas de vida, bem como a importância de um acesso adequado aos recursos biológicos e genéticos e de uma utilização adequada desses recursos, o respeito pelos saberes tradicionais, bem como o papel dos seres humanos na protecção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade.
Aplicação dos princípios
Artigo 18º Tomada de decisões e tratamento das questões de bioética

1.O profissionalismo,a honestidade,a integridade e a transparência na tomada de decisões, em particular a declaração de todo e qualquer conflito de interesses e uma adequada partilha dos conhecimentos, devem ser encorajados. Tudo deve ser feito
para utilizar os melhores conhecimentos científicos e as melhores metodologias disponíveis para o tratamento e o exame periódico das questões de bioética.
2. Deve ser levado a cabo um diálogo regular entre as pessoas e os profissionais
envolvidos e também no seio da sociedade em geral.
3. Devem promover-se oportunidades de um debate público pluralista e esclarecido,
que permita a expressão de todas as opiniões pertinentes.
Artigo 19º Comités de ética
Devem ser criados, encorajados e adequadamente apoiados comités de ética independentes, multidisciplinares e pluralistas, com vista a:
(a) avaliar os problemas éticos, jurídicos, científicos e sociais relevantes no que
se refere aos projectos de investigação envolvendo seres humanos;
(b) dar pareceres sobre os problemas éticos que se levantam em contextos clínicos;
(c) avaliar os progressos científicos e tecnológicos, formular recomendações
e contribuir para a elaboração de princípios normativos sobre as questões do âmbito da presente Declaração;
(d) promover o debate, a educação e bem assim a sensibilização e a mobilização do público em matéria de bioética.
Artigo 20º Avaliação e gestão dos riscos
Será conveniente promover uma gestão apropriada e uma avaliação adequada dos riscos relativos à medicina, às ciências da vida e às tecnologias que lhes estão associadas.
Artigo 21º Práticas transnacionais
1. Os Estados, as instituições públicas e privadas e os profissionais associados às actividades transnacionais devem empenhar-se em garantir que qualquer actividade respeitante à presente Declaração, empreendida, financiada ou de outro modo conduzida, no todo ou em parte, em diferentes Estados, seja compatível com os princípios enunciados na presente Declaração.
2. Quando uma investigação é empreendida ou de outro modo conduzida em um ou vários Estados (Estado(s) anfitrião(anfitriões)) e financiada por recursos provenientes de outro Estado, esta actividade de investigação deve ser objecto de uma avaliação ética de nível apropriado, tanto no Estado anfitrião como no Estado em que se situa a fonte de financiamento. Esta avaliação deve basear-se em normas éticas e jurídicas compatíveis com os princípios enunciados na presente Declaração.
3. A investigação transnacional em matéria de saúde deve dar resposta às necessidades dos países anfitriões e é necessário reconhecer a importância da
investigação para o alívio dos problemas urgentes de saúde no mundo inteiro.
4. Na altura da negociação de um acordo de investigação, as condições da colaboração e o acordo sobre os benefícios devem se definidos com uma participação equitativa das partes na negociação.
5. Os Estados devem tomar medidas apropriadas, tanto a nível nacional como internacional, para combater o bioterrorismo e o tráfico ilícito de órgãos, tecidos, amostras, recursos e materiais de natureza genética.
Promoção da Declaração
Artigo 22º Papel dos Estados

1. Os Estados devem tomar todas as medidas apropriadas – legislativas administrativas ou outras – para pôr em prática os princípios enunciados na presente
Declaração, em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos humanos. Tais medidas devem ser apoiadas por uma acção nos domínios da educação, da formação e da informação ao público.
2. Os Estados devem encorajar a criação de comités de ética independentes, multidisciplinares e pluralistas, conforme disposto no Artigo 19º.
Artigo 23º Educação, formação e informação em matéria de bioética
1. Com vista a promover os princípios enunciados na presente Declaração e assegurar uma melhor compreensão das implicações éticas dos progressos científicos tecnológicos, em particular entre os jovens, os Estados devem esforçar-se por fomentar a educação e a formação em matéria de bioética a todos os níveis, e estimular os programas de informação e de difusão dos conhecimentos relativos à bioética.
2. Os Estados devem encorajar as organizações intergovernamentais internacionais e regionais, bem como as organizações não-governamentais internacionais, regionais e nacionais, a participar neste esforço.
Artigo 24º Cooperação internacional
1. Os Estados devem apoiar a difusão internacional da informação científica e
encorajar a livre circulação e a partilha de conhecimentos científicos e tecnológicos.
2. No quadro da cooperação internacional, os Estados devem promover a cooperação cultural e científica e celebrar acordos bilaterais e multilaterais que permitam aos países em desenvolvimento reforçar a sua capacidade de participarna criação e no intercâmbio dos conhecimentos científicos, das correspondentes competências práticas e dos respectivos benefícios.
3. Os Estados devem respeitar e promover a solidariedade entre si e também com
e entre os indivíduos, as famílias, os grupos e comunidades, em especial com aqueles a quem a doença ou a deficiência, ou outros factores pessoais, sociais ou
ambientais tornam vulneráveis, e aos de recursos mais limitados.
Artigo 25º Actividades de acompanhamento da UNESCO1.
A UNESCO promoverá e difundirá os princípios enunciados na presente Declaração. Para isso, deve pedir a ajuda e a assistência do Comité Intergovernamental de Bioética (CIGB) e do Comité Internacional de Bioética (CIB).
2. A UNESCO reafirma a sua vontade de tratar as questões de bioética e promover
a cooperação entre o CIGB e o CIB.
Disposições finais
Artigo 26º Interdependência e complementaridade dos princípios

A presente Declaração deve ser entendida como um todo e os princípios devem ser entendidos como complementares e interdependentes. Cada princípio deve ser considerado no contexto dos outros, na medida apropriada e pertinente,de acordo com as circunstâncias.
Artigo 27º Limites à aplicação dos princípios
Se a aplicação dos princípios enunciados na presente Declaração tiver de ser limitada, deverá sê-lo por lei, nomeadamente pelos textos legislativos sobre a segurança pública, a investigação, detecção e demanda judicial em caso de delito penal, a protecção da saúde pública ou a protecção dos direitos e liberdades de outras pessoas. Qualquer lei deste tipo deve ser compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos.
Artigo 28º Exclusão dos actos contrários aos direitos humanos, às liberdades
fundamentais e à dignidade humana

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como susceptível de ser invocada de qualquer modo por um Estado, um grupo ou um indivíduo para se entregar a uma actividade ou praticar um acto para fins contrários aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana.
Este documento foi traduzido pela Comissão Nacional da UNESCO - Portugal
Rua Latino Coelho, nº1
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© UNESCO, 2006

DIREITO DOS DOENTES À INFORMAÇÃO E AO CONSENTIMENTO INFORMADO

Parecer sobre o Projecto de Lei n.º 788/X (4º)
Solicitado ao CNECV em 17/06/2009 e 18/06/2009 pela Comissão Parlamentar de Saúde da Assembleia da República e Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata.


Considerações Gerais
O Projecto de lei em epígrafe foi apresentado em Plenário da Assembleia da República e, depois de agendado potestativamente, discutido, e aprovado na generalidade, no passado dia 28 de Maio. O registo dos debates ocorridos e das declarações de voto apresentadas, mostra que vários Senhores Deputados criticaram a falta de um Parecer prévio do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, além de vários comentários a aspectos pontuais do documento relativos à sua clareza jurídica e ao respeito por valores éticos substantivos. O pedido de Parecer, posteriormente recebido no CNECV, indica que estas críticas foram acolhidas pela Comissão de Saúde.
Embora este pedido de parecer tenha sido, infelizmente, apresentado muito tardiamente e já com uma versão aprovada na generalidade, justifica-se a elaboração deste Parecer dada a importância dos temas em causa e a necessidade de propor a correcção, em muitos aspectos, da estrutura do Projecto e do seu articulado.
O título do Projecto em apreço é “Direitos dos doentes à informação e ao consentimento informado”. Incluiu os seguintes capítulos: Capítulo I – Generalidades, indica o âmbito da lei.
Capítulo II – Autonomia e Consentimento Informado, tem a Secção I – Informação, a Secção II – Consentimento, a Secção III – Representação de adultos com capacidade diminuída, num total de 13 Artigos. Apresenta, depois, uma Secção IV – Declaração antecipada de vontade e nomeação de Procurador de cuidados de saúde. O primeiro tópico é tratado em dois Artigos, 14.º e 15.º e o segundo tópico em outros dois, o Artigo 16.º e o Artigo 17.º; dois Artigos finais, 18.º e 19.º tratam respectivamente do Direito à objecção de consciência e à não discriminação.
Capítulo III – Autonomia e processo clínico que é constituído pelos últimos cinco artigos.
Esta estrutura e desenvolvimento são no mínimo confusas e contraditórias. Assim:
1 Datas de entrada no CNECV dos pedidos de parecer.
- O título induz em erro porque a declaração antecipada de vontade e o acesso ao processo clínico não relevam do consentimento informado;
- Minimiza o importante tema das Declarações antecipadas de vontade, dedicando-lhe apenas dois dos vinte e quatro Artigos do Diploma;
- Trata com desenvolvimento, em mais de metade do texto, a matéria do Consentimento informado,que já está presente no nosso Direito interno, em especial no Código Penal;
- Confunde o direito da pessoa doente a conhecer as informações pessoais de saúde com o acesso ao seu processo clínico.
O objectivo expresso pelo legislador foi a regulação dos “direitos dos doentes, no exercício da sua autonomia”, para reforçar “a tutela do direito à autodeterminação do doente no âmbito de qualquer intervenção médica”, e o que é referido como “o permanente equilíbrio entre a liberdade individual e o desenvolvimento da biologia e da medicina na prática médica e o carácter personalizado da relação médico-doente.”
Na realidade, se a finalidade da lei agora proposta era efectivamente o reforço da relação médicodoente, o efeito que iria ser obtido seria provavelmente o oposto. De facto, o projecto reflecte uma mal entendida primazia absoluta da autonomia como valor ético, quando o que é necessário pelas razões aduzidas a seguir, é reforçar a “intimidade” moral da relação médico doente. Há uma constatação crescente que os modelos legais ou políticos da autonomia têm de facto obscurecido perigosamente os valores profissionais e morais do exercício da medicina, que continuam a ser,como afirma Cassell, essencialmente os de uma profissão moral.
A autonomia, entendida do modo que nos parece subjacente ao diploma, é inadequada para se assumir como elemento único e dominante neste contexto.
Em primeiro lugar, porque no cenário real da clínica está muitas vezes limitada, mesmo quando o doente se encontre no gozo pleno das suas faculdades.
Em segundo lugar, porque a responsabilidade dos médicos e outros profissionais de saúde, emerge precisamente do sentido de responsabilidade intrínseco à profissão e não, primariamente, de um conjunto de regras destinadas a salvaguardar a autonomia dos doentes.
O legislador parece ter seguido modelos derivados da experiência anglo-saxónica, eles próprios já muito questionados, sem atender à nossa realidade antropológica e cultural. Assim – e neste Projecto-Lei isto é particularmente evidente – a autonomia é apresentada quase como um direito negativo – o direito a recusar –, e não como um direito positivo, de partilha de responsabilidade.
Aliás, a obtenção do consentimento informado, como observa, entre outros Alfred Tauber, tem funcionado como mero cumprimento de um ritual de confiança, num contexto contratual que denega a essência do acto médico. Se de facto é hoje um complemento indispensável deste, a sua formulação, assumida pelo médico nos termos mais radicais que este diploma favorece, terá como consequência deslocar completamente a responsabilidade para o doente.
O risco é, pois, que a obtenção do consentimento informado nos termos enunciados no diploma se torne uma rotina no processo administrativo da prestação de cuidados de saúde, anulando aquilo que deve constituir o cerne da comunicação entre médico e doente, que se deve apoiar na confiança.
Repare-se que a formulação proposta não assegura, de forma alguma, por exemplo, que o doente compreende efectivamente a escolha que está a fazer, que a decisão é livre de qualquer forma de coacção e que os seus interesses reais são protegidos. De facto, o que é cada vez mais importante na medicina contemporânea é ajudar o doente a identificar o que é pertinente e relevante do ponto de vista pessoal, social, moral, etc. A afirmação da responsabilidade médica e o exercício de beneficência exigem o respeito pela dignidade do doente e, portanto, da sua autonomia.
O que este diploma esquece é que todos os estudos que se têm debruçado sobre esta questão demonstram que, embora os doentes apreciem e desejem que lhes seja dada informação sobre as várias opções diagnosticas e terapêuticas, o doente geralmente deixa a decisão final ao seu médico.
O cenário real da prática clínica actual é completamente diverso daquilo que parece ter inspirado o presente diploma.
De facto é importante ter em conta que:
1 – A assimetria tradicional do conhecimento entre médico e doente está cada vez mais esbatida por duas razões: a visualização da doença pela imagem e o acesso ao relatório desta, e o recurso à Internet.
2 – A medicina especializada, altamente tecnológica, veio aumentar substancialmente o risco, a incerteza e a complexidade da decisão. Mais do que nunca a informação transmitida é de natureza probabilística – 3% de mortalidade o que significa para o doente na situação real da clínica? – cuja apreensão é, mesmo para o doente sofisticado, extremamente difícil.
3 – A dificuldade crescente em o doente identificar quem é o seu médico e aquele com quem pode estabelecer um diálogo esclarecedor, não só sobre um procedimento específico, mas sobre todo o processo da doença.
O que o doente realmente quer saber, cada vez com maior insistência, é qual é a experiência profissional e os resultados do médico que se propõe tratá-lo e da instituição que o irá acolher. A última pergunta e, talvez para o doente, a mais relevante, é muitas vezes a seguinte: “É o Sr. Dr. que me vai operar?”. Quanto ao resto, o sentimento corrente ainda em Portugal é expresso em afirmações como: “Trate-me como se fosse da sua família”, “Faça o que for melhor para mim”, ou “Estou nas suas mãos.”
Note-se que o que isto significa é que o elemento básico da relação médico-doente continua a ser a confiança, e esta é o principal fundamento moral, igualmente, na ética da responsabilidade. Se isto é minado, por exemplo, por legislação como a proposta, a conduta médica será guiada pela necessidade de cumprir regras formais, que como se disse, deslocam a responsabilidade da decisão para alguém que não está habilitado para a tomar.
(...)
B – Declaração antecipada de vontade

É um tema da maior importância e sensibilidade que mereceria um cuidado especial.
Em fins de 2008 o Conselho da Europa promoveu a apresentação, em Estrasburgo, de um estudo encomendado ao Professor Roberto Andorno, do Instituto de Ética Biomédica da Universidade de Zurich, sobre os princípios comuns e as diferentes regras aplicáveis nos Sistemas Jurídicos Nacionais, quanto a vontades expressas precedentemente no caso dos cuidados de Saúde. O Grupo de Trabalho que preparou o Parecer final, com representação de 19 Países Europeus, entre os quais Portugal, aprovou como conclusão final que “si l’on compare les normes juridiques concernant les directives anticipées des pays européens, il est évident que les pays adoptent différentes approches, basées sur diverses traditions juridiques, sócio-culturelles et philosophiques. Certains pays accordent une valeur prédominante à l’autonomie du patient et à la possibilité de formuler des directives anticipées, tandis que d’autres reposent davantage sur des structures plus paternalistes et sont toujours réticents à légiférer dans ce domaine”.
Esta constatação dos Peritos europeus significa que, no plano ético, não há forma de legislar sem ter apreendido, a partir de um amplo debate nacional, livre e plural, quais são as posturas jurídicas, sócio-culturais e filosóficas que prevalecem numa sociedade.
A comparação desta parte do Projecto em apreço com as leis sobre declarações antecipadas de vontade de Países como a Espanha, a Inglaterra e País de Gales, a Hungria, a Bélgica, a Holanda, a Finlândia e a Áustria, demonstra que o disposto nos Artigos 14.º e 15.º é extremamente insuficiente para dar satisfação às grandes questões éticas subjacentes a tais declarações.
Atente-se por exemplo, ao n.º 5 sobre a eficácia vinculativa da declaração, cuja formulação é de tal forma imprecisa que trai irremediavelmente o objectivo que se propõe. É para nós incompreensível que se omita neste processo o papel da família. Vale a pena chamar a atenção para o facto de que o Projecto ignora que, como observa Peter Singer, as pessoas cujos direitos se pretendem salvaguardar, estão integradas numa comunidade moral, o que contribui para a construção da sua identidade, das suas convicções e dos seus juízos de valor.
Importa igualmente realçar que a declaração antecipada não se refere exclusivamente à negação dos cuidados a serem prestados, mas também, como é aliás referido, diz respeito a cuidados que desejam
que lhes sejam administrados. Quanto a estes, haverá certamente situações em que a vontade expressa pelo doente pode não fazer qualquer sentido, não só no contexto puramente técnico, mas igualmente numa perspectiva social ou até moral.
Os comentários que este projecto e o tema em si têm suscitado, parecem sugerir que a necessidade de legislar sobre esta matéria decorre da necessidade de conter aquilo que uma designação desgraçada chama de “encarniçamento terapêutico”. A relevância real desta prática é difícil de determinar, mas a observação de clínicos experimentados é que, se existe é, certamente, vestigial. O que existe, na realidade, é controvérsia em relação ao uso de meios terapêuticos cujo benefício
parece desproporcionado em relação à qualidade antecipável de vida ou à expectativa de sobrevivência e esta é matéria que, mais do que com a regulação jurídica, se prende com a avaliação rigorosa da evidência cientifica temperada pela consideração dos valores superiores ou pelo bem pessoal dos doentes. Nunca a boa prática médica foi modelada pelo normativo legal, mas sim pela educação, pelo rigor na avaliação científica e pela reflexão moral, que são os ingredientes próprios da medicina na sua vertente de epistemologia moral – epistemologia porque baseada no conhecimento, moral porque baseada em valores.
Nesse sentido, os “limites da eficácia da declaração antecipada” consignados no Artigo 15.º,introduzindo o conceito juridicamente complexo como o de ordem pública e cuja difícil concretização não pode nem deve ser exigível a um médico, não ajudam a esclarecer situações dilemáticas que estão no cerne de decisões moralmente tão difíceis.
Igualmente, a criação do “Procurador de Cuidados de Saúde” que, por deficiente redacção do n.º 2 do Artigo 16.º aparece descrito como «carecido» de capacidade jurídica em vez de dotado da mesma, salienta, mais uma vez, a omissão do papel da família, o que nos parece inaceitável e obrigaria a uma reflexão de outra profundidade. Por outro lado, a redacção do Artigo 17.º,cometendo ao Governo, e não remetendo para decreto-lei ou decreto regulamentar, como a matéria exigiria, a determinação da forma de designar o Procurador e o acesso rápido à existência e
identidade dos procuradores, para além de tecnicamente censurável, não ajuda a clarificar a intenção do legislador de tal modo que a recomendação é, do ponto de vista prático, difícil de executar.
Levanta-se aqui a questão se caberá ao médico procurar determinar se existe ou não um procurador, o que em situação de decisão urgente seria impraticável.
Não sendo possível, em tempo tão limitado, propor os vários Artigos que teriam de ser
acrescentados ao texto para que ficasse rigoroso e coerente tudo o que deve ser estabelecido no articulado, a proposta mais prudente e construtiva é a de retirar a Secção IV deste projecto e elaborar, no futuro, uma boa lei tratando exclusivamente das decisões antecipadas, cuja importância e necessidade não é de mais encarecer e salientar.
Este foi o caminho seguido na Alemanha, onde a lei, recentemente aprovada, foi precedida de demorados debates públicos e parlamentares e de intervenções de múltiplas organizações da Sociedade Civil. E, mesmo assim, as maiorias obtidas no Parlamento alemão foram sempre escassas, o que mostra a dificuldade de gerar consensos e o cuidado que deve ser tido para que uma maioria, sempre transitória, não violente os fundamentos éticos das posições minoritárias.
C – Autonomia e processo Clínico
Não parece que o princípio ético do respeito pela autonomia seja invocável no acesso de uma pessoa doente aos elementos de informação sobre o seu estado de doença, pelo que se sugere a mudança do título do Capítulo III para “Acesso ao processo clínico”. Porque é deste acesso que tratam os Artigos deste Capítulo e em nenhum deles se faz qualquer referência ao princípio ético de respeito pela autonomia.
Sendo certo que os dados concretos obtidos nas investigações, laboratoriais e outras, para diagnóstico, prognóstico e acompanhamento de terapêuticas, são pessoais e devem ser conhecidos do doente, já o modo como o doente deverá ter acesso ao processo carece de uma cuidados a avaliação. Não é menos certo que o processo clínico, como tal, não deve ser facultado ao doente. O processo clínico, além da história da doença, que é uma narrativa do próprio doente e é, obviamente, do seu conhecimento, contem um registo de observações diárias do estado do doente e de instruções para procedimentos; é, por isso, um instrumento de trabalho de médicos e enfermeiros.
O articulado deste Capítulo revela um desconhecimento do que é a relação médico-doente tal como ela é hoje correntemente praticada em hospitais e centros de saúde do SNS, mas também, no universo crescente da medicina privada.
O que prescreve o Artigo 21.º é eticamente inaceitável pois diz que a unidade de saúde nomeia um “responsável” pelo acesso à informação constante do processo clínico, o qual dá parecer sobre o requerimento escrito do doente para consultar o processo clínico e reproduzi-lo por qualquer meio.
Para além de não esclarecer quem decide sobre a consulta requerida, uma vez que o «responsável» só emite parecer, não disciplina o direito de impugnação da decisão adoptada e apenas cura de consagrar que tudo isto ocorrerá “sem intermediação de um médico”.
Como o articulado não diz se este direito do doente pode ser exercido durante o seu período de internamento e no decurso do tratamento, e não apenas após a alta médica, esta consulta do processo faz-se sem intermediação de um médico e com a autorização de um funcionário nomeado, cujas capacidades e competências não estão fixadas nos artigos. Pode ser muito prejudicial para a saúde e bem-estar da pessoa doente. O n.º2 do Artigo 22.º diz que “excepcionalmente o acesso pelo doente à informação sobre a sua saúde pode ser limitado”, mas não diz quem fará essa limitação. Como o n.1
do mesmo Artigo proíbe a intermediação de um médico deve ser o funcionário responsável pelo despacho do requerimento do doente, o que é eticamente inaceitável por “contaminar” a relação médico-doente com um elemento estranho.
Este acesso levanta ainda difíceis questões jurídicas que não parece estarem devidamente acauteladas pelo teor dos Artigos 23.º e 24.º, mas sobre elas não se faz qualquer comentário. Apenas se refere que a possibilidade, dada pelo n.º 4 do Artigo 22.º, de o titular da informação de saúde poder reproduzir,”por fotocópia ou qualquer outro meio técnico, designadamente, visual, sonoro ou electrónico” o conteúdo do processo clínico, abre uma perigosa via para os usos mais perversos,
com graves implicações jurídicas e éticas. Por outro lado parece-nos indispensável uma análise mais cuidadosa sobre o modo como a informação procurada no contexto da investigação clínica, se articula com a legislação actual sobre a prostecção de dados e ter em conta que o simples processo de automatização não anula a probabilidade de identificação do doente.
Assim, recomenda-se que esta parte do Diploma em apreço seja reformulada para estabelecer o que é informação pessoal e o que é processo clínico, para prevenir os maus usos dessa informação facultada à pessoa doente e para que o direito de acesso à informação não venha a ser causador de grave prejuízo à saúde do doente e ao correcto tratamento da sua doença.
Lisboa, 16 de Julho de 2009
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
Foram Relatores deste Parecer os Conselheiros Daniel Serrão e João Lobo Antunes.
Este parecer foi aprovado na reunião plenária do dia 16 de Julho de 2009, em que estiveram presentes: Paula Martinho da Silva, Daniel Serrão, João Lobo Antunes, Jorge Biscaia, Jorge Soares, José Pedro Ramos Ascensão, Marta Mendonça, Michel Renaud, Miguel Oliveira da Silva, Pedro Nunes, Rita Amaral Cabral.
( Para uma leitura integral do Parecer consultar o site do CNECV)